domingo, 13 de outubro de 2024

#2 - Walter Wanderley mudou para sempre os saguões do Habbo Hotel

A subversão de se escutar o gênio pernambucano da muzak em tempos de inteligência artificial

2009: Mordomo e Flecha, moderadores do Habbo, anunciam que vão sair de férias e não podem gerenciar o hotel por algumas semanas. Deixam como substituto um tal de Henrique e, para consolar os usuários, são adicionados ao inventário de cada um deles uma cadeira de praia e uma churrasqueira portátil. Ali está você: no terraço de um edifício alto, à beira de uma piscina, numa área de socialização compartilhada com outros habboers, enquanto um “DJ”, que na verdade é um usuário comum amigo dos moderadores, cuida da trilha sonora do recinto, estourando uma música eletrônica genérica nos alto-falantes. Seus amigos estão no Club Penguin, e você frequenta o Habbo de vez em quando como quem compra ingresso para ir a uma festa em que não conhece ninguém. O céu está roxo, provavelmente é fim de tarde – o senso temporal é vago e distorcido no hotel. A geografia do lugar também é enigmática. Sabe-se que o jogo é gringo – a desenvolvedora é uma multinacional – e sua sala é composta por brasileiros, o que mais se parece com uma encenação gráfica do chat do UOL do que qualquer outra coisa. Tomado por uma repentina solidão, você ao mesmo tempo desiste de tentar se localizar. Dá de ombros, olha para o céu roxo, temporariamente aceita que está naquela festa estranha e puxa a cadeira de praia recém adicionada ao seu inventário. Em outro lugar do hotel, chega um novo usuário, que acaba de criar a conta, prestes a fazer o mesmo percurso que você. Ele se vê no meio de outros nômades e peregrinos no saguão de entrada. Quase sem notar, o ambiente reverbera as notas dos covers de bossa nova de Walter Wanderley, o especialista em salas de espera.

A muzak é um daqueles casos de nomes que foram substantivados, de tão popular que a empresa ficou. É o caso de xerox. Ou kodak. Foi assim que o criador, George Owen Squier, teve a ideia do nome: música + kodak. Ele queria criar um produto igualmente massificado, e tudo começou quando recebeu patentes do governo dos Estados Unidos para transmitir sinais de informação por linhas elétricas. Criando versões suavizadas de músicas que eram hits na época – covers instrumentais, basicamente – sua empresa, Muzak, passou a vender música para estabelecimentos comerciais entregando os covers genéricos diretamente por esses cabos elétricos. Cafés, jantares, saguões de hotel, lojas de roupas, salas de espera de consultórios médicos. As tentativas de descrever o gênero giraram em torno dos termos lounge music, easy listening, smooth jazz, música de elevador. A música se delicia em navegar pelas bordas da consciência: “se você entra em uma loja e acha que está ouvindo Muzak, provavelmente não é Muzak”, foi o que disse Bruce Funkhouser, executivo da empresa, em declaração para a Billboard em 1994, num especial dedicado à companhia. 

Foi Erik Satie, com sua obra Musique d’ameublement (“música de mobília”) quem desenhou os primeiros traçados da muzak. A ideia veio após um jantar em que ele e amigos se irritaram com o volume alto da música do restaurante. Sobre a obra, ele escreveu: “Penso nela como uma suavização melodiosa do ruído de garfos e facas sem dominá-los, sem impor a si mesma. É uma boa forma de preencher o silêncio desconfortável que ocasionalmente assola os convidados. Ela os livra de percorrer os típicos lugares-comuns”. A música ambiente assume, então, a função fática, e essa indesejável forma contemporânea de diálogo – a small talk –, demonizada por sitcoms estadunidenses em um de seus raros acertos, pode ser finalmente dispensada. Em vez da conversa sem significado, os convidados podem focar em outras práticas que têm ganhado tração – é o exemplo do mindfulness: o “aqui e agora” de apreciar uma leve melodia ao fundo.

Depois de Satie, estava delineado o caminho para o desenvolvimento da muzak propriamente dita. Surge aí um de seus maiores expoentes, e o representante brasileiro na cena da lounge music: o lendário organista pernambucano Walter Wanderley. Como de praxe em músicas do estilo muzak, ele tratava obras que não eram de sua autoria e as transformava em músicas de saguão. Especificamente, ficou conhecido pelas releituras instrumentais de clássicos da bossa nova. Pouquíssimo conhecido no Brasil, rumou para os Estados Unidos antes dos 30 anos, onde fez o mais absoluto sucesso. Seu disco Rain Forest, de 1966, vendeu mais de 1 milhão de cópias, com o single Summer Samba, de Marcos e Paulo Sérgio Valle, tendo alcançado o segundo lugar nas paradas. Outras gravações incluem O Barquinho e Garota de Ipanema, por exemplo. 

Sua música é bem sucedida em ser ignorável – no post passado, celebramos a ignorabilidade da música ambiente como virtude, de acordo com Brian Eno, e agora vemos ainda esse traço como formativo do pertencimento a um gênero musical: a música de Walter Wanderley habitando um ecossistema de músicas de saguão que mutuamente se validam. Boa parte da leveza que ele consegue atribuir aos originais da bossa nova é mérito das delicadas teclas do órgão. Com virtuosismo técnico, a execução perfeita das partituras faz Wanderley dar às suas obras o exato aspecto que ele deseja: o de leves pinceladas, o de um pintor modernista cuja obra não faz mais que meras sugestões aos sentidos; a criação de uma arena de apreciação sofisticada, sutil – condizente com a pulverização da experiência que já começava a dar sinais em seu tempo. A bossa nova reinterpretada pelas teclas do órgão de Wanderley ganhou “alegria nas pernas”, o aspecto de um videogame ambientado no meio de praias e palmeiras. Mas, ao mesmo tempo, havia algo de sombrio, algo que é impossível compreender totalmente sem recorrer à desoladora atmosfera do Habbo Hotel.

Voltamos ao terraço do hotel em um suposto entardecer. Numa sala de aparente abundância de companhia humana, num lugar que lembra vagamente algum convívio brasileiro, com uma cadeira de praia que lembra vagamente a sensação de estar na praia, com os pés na areia – exceto por o céu estar roxo e você ser um boneco de alguns poucos pixels –, seu desconforto ao ouvir a animada música curada pelo DJ medíocre é parecido com o do nosso amigo que acaba de chegar à recepção do hotel e escuta os acordes de Walter Wanderley. A partir desses acordes, é imediato ouvir vozes saindo do restaurante do hotel. Ele vê as pessoas comendo, conversando, e ouve os sons de talheres exatamente como descritos por Erik Satie. O próprio coro de vozes se torna música ambiente, se une à composição de Wanderley e compõe uma obra maior. Vozes em que se pode focar e distinguir sons, conversas que fazem sentido, mas que soam tão inescapavelmente genéricas, conversas de figurantes, vozes de espectros e interlocutores perdidos nos abismos entre idiomas que se colocam entre eles – turistas que são, hóspedes do Habbo Hotel. Nosso amigo percebe que é o Bill Murray e que está dentro de um filme da Sofia Coppola.

O Habbo era como entrar numa colônia de férias sem levar nenhum amigo. No início da vida, experimentar uma das primeiras sensações de solidão, pensando: como é possível tanta gente se conhecer previamente? Amigos que já se conheciam combinaram de entrar na colônia de férias em conjunto, na mesma turma? Um deslocamento, uma defasagem espectral que começava a ser ensaiada no Habbo à beira das piscinas, nas festas de jovens descolados e DJs que atraíam todas as atenções. Diferente do acolhimento do Club Penguin, da simpatia que tornava natural a invenção de amizades, da hospitalidade que já existia ali e que tornava encorajador até mesmo levar os seus amigos prévios. No Habbo – com exceção da turminha da colônia de férias – eram todos viajantes, eram todos apartados de qualquer senso de enraizamento, e a ansiedade jovem de ir tentar colher afetos mais oblíquos no mundo – mesmo em uma ida com amigos, a sensação era muito mais a de frequentar um Bosque Bar na Lagoa do que o barzinho que já se tornou seu habitat espiritual. É nesse pano de fundo que entra a música de saguão de Walter Wanderley com o senso de estranhamento perfeito que inunda um lugar como esse – a liminaridade, o surrealismo, o questionamento da existência que acompanha um déjà vu amargo de estar longe de casa, de ouvir uma sequência de melodias estranhamente familiar – familiar, mas consistentemente em paralaxe. Wanderley traz o acalento familiar da bossa nova mas corrompida por uma impessoalidade permanente, a invasão de um processo que intelectualiza a projetada criação-de-vida da bossa nova (em que pese já ter nascido como um projeto coxinha – quem não se lembra do monólogo do “carioca da enchente”?), um deslocamento que compõe a própria espessura do que é um ambiente gelado, amplo, de socialização etiquetal, de vernissage, ambições de escalada, salões oitocentistas e gotas d’água pingando nos azulejos de um banheiro distante, cheio de eco. A música de Walter Wanderley é congelante, e é impossível não ouvi-la de uma condição de peregrino. Como poderia ser diferente? A história de vida de um brasileiro que fez carreira no exterior sendo reproduzido em salas de espera. Encontrar a música de Wanderley num saguão de hotel estrangeiro não é um lembrete aconchegante do afago de casa e de esperança do reencontro. É a confirmação do exílio, é a manifestação do próprio estranhamento que leva o ouvinte a embarcar num desespero melancólico sem fim.

O valor disso é inestimável, claro. Qualquer música que, nos tempos atuais, se pretenda uma música de aconchego, uma nostalgia que transporte para um ninho familiar (imaginado ou lembrado, porque o realizado é impossível), é uma música mentirosa. A bossa nova é exatamente o paraíso imaginado que nunca o Brasil conheceu. Walter Wanderley sabe que não pode simplesmente se inserir como um artista do gênero e reproduzir esses sons do paraíso. Fazer uma oposição frontal à bossa nova, embora digno, também carregaria em si uma ingenuidade muito fora de época, muito pouco consciente das reais chances de esperança. Ele faz uso do único modo concebível de dialogar com a bossa nova e retratá-la no exterior: Wanderley habita o impossível e alimenta sua arte da própria substância desse estranhamento que é ao mesmo tempo criador e criatura da muzak. 

É daí que vem o paradoxo fundamental da leveza e da “alegria nas pernas” de sua música, das ideias de praias e palmeiras, de videogame do Sonic, em contraste com essas assombrações cortantes. As mesmas teclas límpidas e de sonoridade modernista que criam a leveza trazem também uma ambientação futurista, de eficiência tecnológica e mundo dos Jetsons, dirigíveis e carros voadores, que sugere uma geografia impossível: Walter Wanderley claramente não descreve um lugar que existe. Não é um lugar real que nutre sua música, não é de onde vêm suas ideias. Ele necessariamente habitou um lugar assombrado e nos transmitiu, como em sinais, suas experiências de lá. Isso é muito diferente de Tom Jobim e Vinícius de Moraes terem concebido um cenário imaginado mas estando, em corpo, na praia de Ipanema. Wanderley precisou inexistir, se aventurar por planetas da ficção científica, por distopias que lembram a Terra, perguntar os segredos de lá e, aí sim, conseguir criar, fazendo o maior esforço para se lembrar e reproduzir fielmente os sons da bossa nova, com o distanciamento inevitável imposto pela geografia, por estar num lugar completamente liminar, por estar perdido em algum corredor do Habbo Hotel. O que sai desse deslocamento, curiosamente, é um sentimento desesperadoramente atual. A música de Walter Wanderley traz perfeição na execução técnica, estrutura tradicional, a intenção de reinterpretar obras também clássicas. Tudo isso estaria perfeitamente dentro do normal. O que há, então, para se estranhar nisso? Um olhar desatento não perceberia, mas, como em código, como se nos fornecendo uma chave para decodificar o que essa aparente harmonia quer comunicar, vemos que está tudo um tanto quanto deslocado para a direita. Harmonicamente deslocado, sim. Mas o padrão está aí. A música de Walter Wanderley não é uma música de celebração do paraíso imaginado.

A fórmula para executar tudo isso, a disciplina para se ater à perfeita execução técnica sem adicionar muito de autoria sua, sem deixar escapar seus próprios traços, o tratamento das teclas do órgão como ofício, em vez de expressão artística própria, exigiu necessariamente que Wanderley usasse pouca inventividade. A transformação do original da bossa nova em uma música típica sua parece tão receitual, tão algorítmica, que lembra muito o que fazem hoje as ferramentas de inteligência artificial. Mas isso então retiraria algum mérito dele? Para isso, teríamos que tratar o algoritmo como um ser que já nasceu pronto, externo ao mundo, alheio aos elementos do mundo que o precedeu. Mas é exatamente o contrário: qualquer forma de inteligência artificial só teve sua concepção concebida precisamente por causa do que a antecedeu. Esses eventos prévios foram os professores de sua forma de pensar, os formadores da sua estrutura de processamento. Se o algoritmo não só colhe os inputs da bossa nova original e produz uma saída automatizada, se o próprio processamento desses inputs ele já precisou pegar emprestado de algum lugar, Wanderley tem mérito de ter chegado antes, criado um “produto de inteligência artificial” antes, e ele é então a origem disso, o grande fornecedor de invenções e sustentáculo intelectual da forma como um computador musicalmente pensa – Walter Wanderley é, nesse sentido, o pai da computação.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

#1 - Música de espera da linha telefônica do laboratório Sérgio Franco

Cuidados hospitalares encontram dream pop na discreta obra da rede de medicina diagnóstica

Brian Eno escreveu: "a música ambiente precisa acomodar diversos níveis de atenção na escuta sem forçar um em particular; ela deve ser tão ignorável quanto é interessante".

Os sons de fundo na linha telefônica do laboratório Sérgio Franco não se apresentam da forma mais convidativa como música a ser "propriamente" apreciada. Esse impulso inicial deriva de uma tradição mais conservadora de ver a forma artística - aquela em que o meio de apresentação é o que define uma música como tal. Surge aí uma série de expectativas que circundam uma "experiência" de apreciação: tempo e lugar cuidadosamente separados para a uma escuta atenta e exclusiva; dinâmica de uma certa subserviência em relação à obra, que pretensamente tem algo de divina. Em resumo, uma espécie de idealização. E o palco que recebe a música da linha telefônica do Sérgio Franco não é um palco que se costuma frequentar esperando uma performance musical, o que torna difícil a vida de um ouvinte que, em condições específicas, se veja desconcertado diante de uma obra que passou a perceber com novos olhos. 

Não importa o que o levou a esse estado mental em particular - se foi induzido por alguém, se veio de uma sugestão dos sentidos que partiu da própria música de fundo, ou de uma disposição prévia a já esperar desses sons alguma experiência "artística" - caso dos leitores do blog Música Ambiente RJ. Não se trata de apreciar "profundamente", nem mesmo de trazer essa admiração ao nível da consciência. Até porque defender tal único modo de se relacionar com a obra só serviria como aliado dessa visão de música que por tanto tempo foi aprisionante.

Esse olhar liberto, apesar de já estar aí por décadas, ainda hoje é subversivo, porque tem sido muito comum uma ideologia marqueteira, dessas autodeclaradas anticapitalistas (mas que em sua essência são capitalistas profundamente), que se opõem, de um modo muito genérico, a um tratamento "utilitário" da arte. Esse conceito foi lavado na máquina até perder completamente sua coloração e seu significado. A visão de que uma música não pode ser útil, não pode ser usada para trabalhar, não pode servir para preencher lacunas, não pode ser uma companhia durante o tempo de espera de uma ligação telefônica com fins comerciais, bebe dessas fontes reacionárias. Basta notar a quantidade de imperativos negativos na frase anterior. E nenhuma dessas proibições que mencionei são exagero meu: todas já fazem parte do senso comum, em maior ou menor grau, a ponto de não produzir estranhamento quando trazidos à tona. Mas essa retórica da proibição, esses imperativos que se colocam e cuja base é tão fraca que já nem se sabe a origem, tudo colabora para um eco de vozes que se reproduzem e se propagam de modo acrítico.

Sobre a origem, na verdade, conseguimos ao menos intuir algo. Para isso, é preciso buscar outros fenômenos que, por genealogia, parecem ter vindo do mesmo lugar. O mais importante deles é a recém popularizada "prosa publicitária" - livros que compõem uma literatura "sensível", com construções poéticas - ritmo, temas e de forma mais geral a própria Voz dessa prosa - claramente identificáveis, mimetizáveis a partir de um senso específico de afetação presente nessa escrita. E que avançam de forma absolutamente predatória sobre o campo da digna prosa poética e até da própria poesia. Se essa voz pudesse emitir sua opinião a respeito da música do Sérgio Franco, certamente escreveria: "a musica jamais pode ser instrumentalizada! ela é um abrir-se aos dispositivos do sensível!". Já se conseguiria, hoje, vender em massa romances ditos sensíveis produzidos inteiramente a partir de algoritmos, e da mesma forma se pode escrever uma crítica que seja, em sua aparência, muito sóbria e contemporânea, reprovando o tal uso utilitário da música, como frequentemente é o caso da música ambiente. Mas, ainda que em sua aparência essa crítica advogasse por um lado humano e libertador, no fundo o escrito não passaria de um serviçal das forças da proibição, um dentre incontáveis oompa-loompas contemporâneos do superego, e desprovido de qualquer substância.

Então a música da linha telefônica do Sérgio Franco pode, sim, ser analisada "por si só", com os típicos cuidados com que se olha para a obra nesse tipo mais tradicional de análise, mas também não é necessário - e é radicalmente equivocado - descartar a avaliação da obra a partir de seus aspectos utilitários. Se a música em questão tem, entre suas qualidades, a de cumprir o papel de preencher um espaço, reduzir a solidão de um iminente utilizador dos serviços de um laboratório de imagem, tanto melhor. Que parte dos elementos levados em conta ao se avaliar a música sejam esses, então. Nesse quesito, é impossível imputar ao fundo musical do laboratório Sérgio Franco qualquer demérito. No aspecto da utilidade a música cumpre sua missão com enorme honra, evitando com eficácia o tédio e, acima de tudo, a solidão do ouvinte. No mundo de hoje, numa sociedade que, para a enorme maioria das pessoas, foi moldada para a infelicidade, alienação afetiva e sofrimentos vindos como flechas de todos os cantos, o cuidado, o carinho de uma música que foi colocada de forma intencional, escandalosamente humana, para fazer companhia a almas surradas e cansadas, é um gesto de afeto dos mais maravilhosos - e, honestamente, inesquecíveis - que se poderia pensar. Não importa que o contexto envolva uma relação comercial que a sucede e uma voz robótica que a antecede - if anything, esses elementos só colaboram para realçar a humanidade da música de fundo, via contraste. Eu me pergunto quantos clientes do laboratório Sérgio Franco têm o mesmo sentimento, quando ouvem a música, que eu tenho: o de gratidão ao funcionário, empreendedor em seu ramo, cuidador por vocação, pensador por natureza, que teve a ideia e a implementou nas linhas telefônicas da companhia. 

Um fator fundamental, que só faz reforçar as impressões do parágrafo anterior, e que, por pertencer ao contexto da obra, por fazer parte do universo particular que ela inaugurou, não pode de maneira alguma ser ignorado, é que se trate de uma empresa do setor de saúde. O cuidado já seria empático o suficiente dada a configuração socioafetiva mais conjuntural que mencionei. Mas o senso de acolhimento - inevitavelmente atrelado a uma maior necessidade dele - é ainda aumentado quando se pensa nas ansiedades que vêm com a incerteza de um futuro exame médico. Fosse uma operadora de telefonia, fosse o programa de perguntas na TV aberta Top Game (aquele que nos fazia esperar na linha para sempre e nunca entrar no ar), nem de perto o ato de cuidado assumiria igual delicadeza. A música do Sérgio Franco responde a uma necessidade urgente - uma resposta que desfila pelos limites do existencial.


Musicalmente, a trilha que acompanha a espera por um dos atendentes do Sérgio Franco revela uma estrutura em looping: repete, até o instante do atendimento, um trecho de cerca de um minuto e trinta segundos de duração. Não é do meu mais obcecado interesse tentar demarcar a que unidade estamos nos referindo, em termos de apresentação musical. Se é álbum, se é faixa. A presente obra é o que é, e, se fizéssemos realmente questão de levar em consideração o seu invólucro, isso penderia muito mais para uma qualidade do que um defeito: sendo uma obra musical de duração variável - que depende do tempo de espera que cada cliente vai atravessar - ela é completamente inovadora em sua apresentação. Cada ouvinte terá sua própria experiência com a obra - o que já sabemos ser uma verdade inescapável sobre a relação individual com qualquer peça artística, é claro. Mas com tal inovação formal a criação do laboratório Sérgio Franco elegantemente acena para esse aspecto da música e demarca seu posicionamento teórico: não é uma obra alheia aos debates que tomaram as últimas décadas dos estudos culturais. 

No fundo, constante ao longo da faixa, um sintetizador etéreo. É o primeiro, dentre os elementos formadores da ambientação, que remete ao dream pop. O segundo elemento é o timbre delicado, que não chega a formar palavras inteligíveis, da vocalista anônima que empresa sua voz à obra. Procurada pela redação do Música Ambiente RJ, a equipe representante do laboratório Sérgio Franco não soube responder quem é a autora da cantoria, tampouco a quem se devem os créditos pela composição.

O elemento, contudo, que detém a maior parte do mérito em aproximar a ambiência da obra ao conjunto de signos que formam o universo do que se entende por dream pop é um que se alastra por todos os instrumentos, mesmo os que não aproximam a música particularmente dessa ambiência (o ruído metálico intermitente, o piano que entra em cena mais tarde, a estalada percussão e os sopros). Mesmo eles são empurrados na direção das particularidades do dream pop por efeito deste fator onipresente e homogêneo: um senso de distância. Senso físico mesmo, estimulado por um competente controle dos efeitos sonoros associados a cada instrumento. Todos os componentes da paisagem sonora, sem exceção, são amortecidos e reverberados a partir de uma aparente distância do ouvinte. E, depois de tudo isso, ainda se introduz o elemento final, que é uma degeneração da qualidade sonora. Uma estética lo-fi, em termos mais simples. Não é fácil para um ouvido mais distraído, e nesse âmbito a trilha do laboratório Sérgio Franco perde um pouco o seu foco, enquanto música do gênero ambiente, em possibilitar uma escuta desatenta. Mas tudo isso por um bom motivo, e que coloca a obra de volta em perfeito alinhamento com seu propósito utilitário: o de não permitir que o ouvinte relaxe completamente a ponto de se esquecer que está na espera da linha telefônica do laboratório. Mantendo a experiência de escuta em terreno relativamente desagradável, evita-se um ocorrido trágico: o risco de que o ouvinte esteja distraído no momento que um funcionário atender, e com isso atrasar os trâmites de agendamento dos exames médicos devidos. Afinal, é a saúde do paciente que está em jogo.

Nota da redação: Talvez por ser o primeiro escrito do blog, vejo com naturalidade que o texto tenha tido um viés mais digressivo, até introdutório, ou aspirado a uma análise um pouco mais geral, e menos detida na obra em si, do que seria de se esperar. Também vejo com naturalidade um paradoxo que surge com a mera existência desse blog. Desenhei no texto uma divisão entre ouvir atentamente e ouvir "subliminarmente" obras musicais, em especial as do gênero ambiente. Defendi que essa última forma apareça com maior frequência. O "problema" é que, para cada análise publicada aqui - análise de uma obra em particular -, eu faço uma adição ao grupo das escutas atentas. Isto é: me deter sobre uma obra unitária, e dedicar uma postagem a ela, é não praticar aquilo que melhor reflete a minha visão sobre o consumo de música. Mas aqui me permito apontar uma sutileza do texto: proponho uma aceitação de todas as formas de escuta, não a imposição da tirania de uma delas. Como espero já ter deixado claro, considero fora de época todos os imperativos. Ao lançar luz sobre algumas obras individuais, tento atrair a atenção para as demais músicas do gênero - talvez até, num cenário otimista, contribuindo para o aumento de sua popularidade. Então me parece que, de um jeito inusitado, criar uma escrita atenta pode ter alguma serventia para a escuta distraída. Isso me exime, acho, de boicotar minha própria visão. Tão importantes quanto os textos que venham a ser publicados aqui, ou até mais importantes, serão as músicas não comentadas, as trilhas que servem de fundo para a escrita desse material, e que podem não ser documentadas, as faixas que estiverem tocando em momentos de ócio e testemunhem alguma reflexão que venha parar aqui, ou o que estiver nos fones de ouvido dos leitores do Música Ambiente RJ, seja enquanto estiverem lendo o blog, seja em situações diversas: em nossos trajetos e deslocamentos, em nossos estudos e trabalhos, em nossas atividades domésticas. No que compõe a nossa vida.