terça-feira, 11 de novembro de 2025

#13 - Uma teimosa defesa da folga

Mogwai no Circo Voador, John Cage e a importância de não otimizar

Os atuais vídeos de yoga na internet se dividem em dois tipos. Um deles é exclusivamente informacional, e quer "transmitir conteúdo". O objetivo é que você decodifique a mensagem, não importa a forma como está sendo dita, em termos de posições que o corpo deve fazer, e as execute. Deve-se mexer este músculo de uma certa maneira e depois aquele outro. A instrução é pontual e facilmente identificável no corpo. Quanto menos ruído houver no caminho, melhor. Falo de ruído enquanto acontecimentos acessórios - barulhos, detalhes do rosto de quem está falando, uma dicção estranha; em suma, tudo que implique um risco maior de distração. Se possível, que essa série de posições corporais seja assimilada por "download". Os Jetsons se alimentavam por pílulas, e o dilema é o mesmo. Por um lado, a inegável eficácia, mas por outro a perda dos aspectos sensíveis que rodeiam o ritual da alimentação ou da prática de yoga. 

O segundo tipo de vídeo é um excessivamente estetizado, em que se nota que o criador deu atenção à forma mas simplesmente foi mal assessorado na formação de seu senso estético. Trata-se do yoga mais comercializável, no estereótipo ao qual costuma ser mais imediatamente associado - a estética clean, novaiorquina, a ideia de yoga como "estilo de vida", ou seja, não como algo que se pratica, mas como algo que você é visto praticando. Acontece que trancado dentro de casa na pandemia, precisando fazer qualquer tipo de movimento físico, tive a sorte de achar um vídeo que não pertencia a nenhum dos grupos. Era do Gilberto Schulz, e continha uma série de movimentos que eu deveria repetir todos os dias. No início repetia por não ter memorizado ainda a sequência, mas depois percebi que, mesmo já sabendo o passo-a-passo, algo ainda me prendia ali. Com as múltiplas exibições me acostumando ao vídeo, uma espécie de relacionamento foi criado: como em qualquer outro, há a criação gradual de uma familiaridade com o particular daquele objeto e, para isso, é necessário que o objeto tenha uma personalidade suficiente para se estabelecer raízes nos seus detalhes. Esse vídeo tinha diversos deles. Pertencia à realidade, era algo a ser vivenciado no mundo. Tinha suas próprias invaginações e trejeitos, e um deles motivou este texto. 

Perto do fim da prática, no interlúdio para uma meditação guiada que conduziria, o instrutor nos dava um momento de descanso. A sessão de yoga era leve, uma das menos desgastantes que eu já tinha feito. E, mais ainda, o vídeo feito na pandemia talvez tivesse a maioria de seus espectadores passando os dias em casa, com um cansaço que era somente mental, não físico. O descanso fazia inicialmente pouco sentido, então. De barriga para cima e joelhos dobrados, o quadril passava de uma posição inicialmente erguida para finalmente entrar em contato gradual com o tapete, seguido pela coluna. A ordem era descer vértebra por vértebra, começando pelas mais próximas da cervical, que estavam menos elevadas, até que o corpo estivesse em nivelamento horizontal. Eu ganhava consciência das vértebras e sentia o contato delas com a maciez do tapete, perfeitamente alinhadas. Depois ficávamos por um minuto estatelados no chão, descansando. Só sei que ali não importava que o descanso fosse redundante, que o exercício anterior já tivesse sido quase um relaxamento: por algum motivo aquele momento me afetava ainda mais por isso. Acho que a redundância do descanso ganha esse poder, que vem não da qualidade de necessário, porque quando ele é necessário é também pouco notado, governado apenas por ação e reação. A respiração profunda é mais prazerosa em repouso do que quando se está recuperando, ofegante, de um exercício intenso. Quando se cria essa camada de redundância, parece que é aberta uma consciência maior sobre o acontecimento, e fica mais explícito o ato de cuidado por trás. 

Lembro de sentir o mesmo com outro youtuber que fazia lives e nos presenteava com cinco minutos de espera no começo, para que o público da live tivesse tempo de chegar (uma espera na presença dele, com ruídos, não uma espera fora do ar). Essa espera também vinha como um descanso, ainda que o vídeo tivesse acabado de começar, e isso sempre me afetava de uma maneira similar a um ASMR. Em outro vídeo, de uma aula de doutorado em alguma universidade gringa, o professor divide o longo conteúdo em duas partes ao oferecer para os alunos um pequeno intervalo ali no regime presencial. Sem cortes, o vídeo conservava a lentidão do período de pausa e, em vez de pular para a volta do conteúdo eu vivenciava essa pausa com prazer maior do que o resto do vídeo. Várias vezes, depois de já ter terminado a aula, eu voltava para esse vídeo especificamente nos minutos de pausa. Todos esses exemplos se iniciam no gesto de arranjarem para nós um espacinho para respirar, um espacinho como aquele entre as vértebras e o solo, quase imperceptível. Mas que nós assimilamos em toda a sua completude, porque o corpo recebe essas pausas com alívio. Podemos batizar conceitualmente esse espaço de folga.

*

Numa avenida movimentada em horário de almoço de um dia útil, um homem de camisa social anda depressa, como uma seta num fluxo de setas que percorrem direções aleatórias, governadas pelo caos. Ele não tem consciência disso, mas vive buscando otimizar cada segundo de seu dia. Com o sinal aberto para os veículos, ele vê um carro se aproximando em velocidade moderada, mas numa fração de segundo calcula que sua travessia ousada deve dar certo. De fato, completa a chegada ao outro lado, tendo economizado alguns segundos. Satisfeito com sua sagacidade, um pequeno jato de serotonina banha seus órgãos internos. "Tomei uma boa decisão", ele diria se estivesse buscando palavras para externalizar esse breve momento de prazer. Essa pequena conquista acrescenta ao castelo que ele constrói cuidadosamente, com disciplina e consistência, à ideia de si como alguém que "toma boas decisões". Ele é uma pessoa otimizadora.

A teoria econômica chama este sujeito de homo economicus. Os dispositivos teóricos que o neoliberalismo desenvolveu para fundar e legitimar suas bases de funcionamento necessitam, literalmente (porque os modelos matemáticos usados para representar fenômenos ecônomicos dependem de certas hipóteses sobre os agentes), que os indivíduos modelados sejam do tipo homo economicus. Isso sempre aderiu de forma surpreendentemente boa à realidade quando se trata de quem tem o poder decisório - donos de empresas, por exemplo. Mas lamentavelmente a era dos empresários-de-si fez disseminar na sociedade a sanha otimizadora como uma infecção. Cresce o número de pessoas, até as que podem escolher, que têm uma rotina apertada, sem espaço para besteiras e vícios. Hobbies apenas se tiverem propósito, conversas apenas com pessoas que te lançam para frente, que sejam as quatro mais inteligentes que você dentro da sala, sem papo furado jogado fora. Decadência do álcool, crescimento da coca zero. Aqui, quem impera é o oposto da folga. Esse aperto na rotina, a hipertrofia do treino, os adjetivos "tight" ou "clutch" usados como os maiores dos elogios na língua inglesa. E, como não devia ser surpresa, isso está incorporado nos modelos econômicos. 

A otimização se trata do seguinte: um agente econômico, para tomar uma decisão, usará as informações disponíveis - fórmulas matemáticas, basicamente. Ele sabe sua própria função de lucro, sua função de custo, as fórmulas de comportamento dos consumidores, de seus empregados. De posse disso, ele maximiza sua função de lucro, o que consiste em escolher determinados valores (quantidade de insumos de produção, salários dados aos empregados, horas de trabalho exigidas de cada empregado, preços cobrados aos consumidores) que levem aos melhores resultados para sua função. Essa maximização, entretanto, encontra alguns obstáculos. São as chamadas restrições, como a existência de um salário mínimo, de um máximo permitido de horas que um empregado pode trabalhar, de um preço máximo que pode ser cobrado dos consumidores antes de ser considerado abusivo. Se não fosse por essas restrições, o "ótimo" (no sentido técnico, isto é, a solução que otimiza o resultado para o empresário) seria sempre pagar salário zero e exigir horas infinitas. O conceito matemático de otimização é rigorosamente este: maximizar uma função enquanto se está sujeito a certas restrições. Às vezes o problema matemático a ser resolvido é o inverso - minimizar uma função de custos dadas certas restrições que a impedem de ser infinitamente baixa - mas são dois lados da mesma moeda. 

Acontece que, devido às assimetrias de poder, uma dinâmica econômica nunca resultará em uma condição folgada para trabalhadores e consumidores. Matematicamente, a busca por maximização de lucros consiste na escolha de x e y que sejam os que maximizam a função f(x,y). Para isso, tem-se uma lista de restrições a serem seguidas. Elas são do tipo g(x,y) ≥ c, ou h(x,y) ≤ b. Essa modelagem do "maior ou igual" ou "menor ou igual" representa o fato de que as restrições vêm na forma de um valor mínimo ou máximo a ser respeitado. É reservado ao empresário o direito de pagar acima do salário mínimo ou de pedir que seu funcionário trabalhe menos de 44 horas semanais. Observamos na teoria econômica, no entanto, os modelos prevendo que o empresário homo economicus, pessoa otimizadora, seguirá sempre à risca as condições impostas a ele. Quando isso acontece, dizemos que a restrição original se torna uma "binding constraint", ou seja, aquela função que deveria ser maior ou igual a um determinado valor passa a valer, após resolução do problema matemático, com igualdade - no formato g(x,y) = c. O salário poderia ser maior que o mínimo, mas buscando a maximização do lucro a escolha final do empregador será, sem surpresas, simplesmente aquele que ele foi obrigado a pagar. A qualidade do chocolate de hoje é pior que a de ontem porque o custo para o produtor subiu e ele, minimizando sua função de custos, adultera a qualidade do produto para manter seu lucro igual. O capitalismo é viver no extremo da maximização ou da minimização. O acúmulo é grande, mas as partes frágeis, como um pano encharcado que é retorcido e apertado até secar, vivem no limite. O termo binding é a perfeita representação desse aperto, dessa ausência total de folga que nos governa. É o mesmo termo usado no Direito quando se elabora contratos e certas cláusulas são obrigatórias de serem seguidas. São chamadas de "binding clauses". No fim, talvez Machado tivesse razão quando descrevia o deleite de se remover sapatos apertados. Quando eu lia os livros de teoria microeconômica que continham esses problemas de otimização, minha relação com as binding constraints, mais do que uma revolta intelectual, era radicalmente sensorial. Saber que a resolução do problema matemático passava por esse aperto me fazia sempre ter devaneios de tirar os sapatos e experimentar a folga, imaginando a sensação de alívio.

Problema típico de otimização. Deseja-se maximizar a função f, em formas ovais azuis, e a existência de múltiplas camadas indica que, variando os valores de x e y, é possível se deslocar ao longo do espaço do gráfico entre as curvas azuis, que resultam em diferentes valores. A restrição é a curva de custo g, em vermelho. A solução do problema matemático está no encontro entre a curva d1 e a curva vermelha, onde as setas são exatamente opostas.

Por acidente o exemplo da quantidade de horas trabalhadas pelo funcionário, decidida pelo patrão, resultar em uma condição de aperto nos lembra novamente o início do texto, a folga definida como descanso. Tal qual as férias do trabalho ou uma espera pela abertura do sinal que em nada otimiza a rotina (mas salva a mente de um estado contínuo de paranoia) ou os espacinhos de inação num vídeo de yoga, num início de live e num intervalo de aula, a folga é a margem entre o ponto que vivemos e o ponto ótimo, esse excesso que nos garante uma distância protetiva, que nos salva da otimização. Os grandes empresários hoje usufruem de excesso - as margens de lucro. Mas dificilmente terão o descanso mental, porque sendo produtores e produtos da cultura do aperto, a paranoia otimizadora está codificada no centro de seu ser. A nível de organização coletiva, deveríamos reivindicar para nós todas as margens. Mas a nível individual, devemos no mínimo reivindicar a folga simbólica. Valorizar a lentidão, as ineficiências, os desperdícios, repelir a pressão pela magreza (manifestação corporal da minimização), cultivar pequenos vícios.

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A folga é também dimensionalidade - Husserl falava do "horizonte interior das coisas", se referindo ao conjunto invisível do que é possível, mas não realizado. O potencial, digamos. A folga são todas as camadas inativadas, abertas em suspensão. Pedro Cassel tem um poema chamado "Profundidade de Campo" que nos abre uma fresta para esse mundo:

estou feliz porque vi meus amigos,
feliz porque na sessão de cinema
tinha muita gente bonita e interessante
que não conheço e posso nem vir
a conhecer, mas cuja existência
enche de possibilidades a vida,
amplia a profundidade de campo
da cidade em que vivo e na qual
estou feliz em morar, porque ontem
num trajeto curto de bicicleta
vi um parque, um bar, um puteiro,
um homem bonito com dois cachorros,
uma árvore caída e um cego cantando.

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"We're going to play two more songs", disse Stuart Braithwaite, do Mogwai. Deviam ter se passado só uns 50 minutos desde o começo do show, que se deu pontualmente às 21h da última quarta-feira, dia 5, no Circo Voador. Era o retorno da banda escocesa à nossa cumbuca acústica depois de treze anos. Mesmo que em 2012 já fossem veteranos e tivessem discografia suficiente para se assentarem e viverem de greatest hits, usufruindo da paz de estar entre os grandes do rock, o grupo continuou ativo nos álbuns de estúdio e fez muitas de suas melhores músicas desde então. Do repertório tocado nesta quarta, sete foram criadas neste período: uma do disco Rave Tapes (2014), outra de As The Love Continues (2021) - a já histórica Ritchie Sacramento - e cinco de The Bad Fire, lançado este ano, que incluem a excelente Fanzine Made Of Flesh. Ainda que um anúncio de estar a duas músicas do fim após meros cinquenta minutos de show costume ser um pouco frustrante, fiz as contas rapidamente. Deviam ter duas de uns dez minutos cada, depois certamente um bis com Ritchie Sacramento e, com sorte, o calhamaço musical Mogwai Fear Satan. Beleza! Ainda estamos na metade do show. Um amigo me disse nessa hora: "Eu não gosto desse negócio de bis não. Acho que ele tem que dizer quantas realmente ainda vai tocar e ficar estabelecido isso". Respondi: "É uma delícia essa sensação de final falso. Você não programava o despertador pra bem cedo nas férias do colégio só pra sentir o alívio de perceber que não precisa levantar de verdade?". E nisso percebi que em última análise eu me referia ao aperto dos sapatos para tirar depois, à redundância da pausa nos vídeos de yoga.

O uso de tampões no ouvido em shows é relativamente comum - os próprios membros da banda todos os tinham. Mas uma moça em particular usava um literal equipamento de proteção individual, um daqueles protetores auriculares vermelhos de loja de material de construção. No início achei certa graça, porque mesmo sabendo do volume que seria alcançado naquele recinto eu desejava viver a experiência sonora completa. No dia seguinte já a invejava com bastante amargura, conforme eu tentava me comunicar ao longo do dia e ouvia as demais pessoas com muita distância, isoladas de mim como que por uma câmara sonora. Mas não tem importância: a parede sonora foi arrebatadora, seja pelos agudos estridentes gerados por três guitarras que tocavam ao mesmo tempo suas notas na parte mais profunda do braço, seja pelo baixo que, do piso de madeira da pista, eu sentia reverberar em mim de baixo a cima, num fluxo que me chegava pelos pés e subia até o coração, se misturando com as batidas cardíacas. Tendo ouvido de amigos que dias antes haviam ido ao show em São Paulo, no Parque Ibirapuera, que a acústica aberta do parque dispersava o som, me senti no Circo (como realmente num circo) um motoqueiro do globo da morte, a arena fechada vibrando e rodando violentamente aos comandos do grupo. Evidentemente com pouco uso de vocais, eu olhava para a banda e devaneava com frequência sobre a facilidade com que aquela formação que via ali no palco podia ser a formação de uma banda de rock mainstream das mais populares e lembradas entre gerações se cedesse ao uso da voz. Está aí a beleza do post-rock: a dimensão de possibilidades de que se escolheu abrir mão pelo enaltecimento dos instrumentos e, de vez em quando, da voz como instrumento. Husserl e seus herdeiros já nos mostraram que esse espaço deixado também pertence ao ser. Logo, a banda não escolheu deixar de ser nada daquilo ao abrir mão dos vocais mas, pelo contrário, conserva a beleza de suas potencialidades de forma oculta. A folga com que resolveu atuar confere à sua música uma riqueza subjacente, um horizonte interior, tão importante quanto o externo. A profundidade de campo é maior em Mogwai.

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Adriano Imperador, em texto publicado no The Players' Tribune, se colocou ao mesmo tempo como desperdício e potencialidade:

"Você sabe o que é ser uma promessa? Eu sei. Inclusive uma promessa não cumprida. O maior desperdício do futebol: Eu. Gosto dessa palavra, desperdício. Não só por ser musical, mas porque me amarro em desperdiçar a vida. Estou bem assim, em desperdício frenético. Curto essa pecha. (...)

Tentei fazer o que eles queriam. Barganhei com o Roberto Mancini. Me esforcei com o José Mourinho. Chorei no ombro do Moratti. Mas não consegui fazer o que eles pediam. Eu ficava algumas semanas bem, evitava o danone, treinava feito um cavalo, mas sempre rolava uma recaída. E todo mundo me detonava. Eu não aguentava mais. 

Tu tá vendo agora. Tem algo demais acontecendo no nosso rolé? Não. Desculpa decepcionar quem quer que seja. Mas a única coisa que eu busco na Vila Cruzeiro é sossego. Aqui eu ando descalço e sem camisa, só de bermudão. Jogo dominó, sento no meio-fio, lembro minhas histórias da infância, ouço música, danço com os meus amigos, durmo no chão. Vejo o meu pai em cada uma dessas vielas. 

O que mais eu vou querer?"

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Uma aparição ainda mais musical da folga é no manejo de silêncios. Mogwai sabe disso. Ainda que suas músicas mais ambiente no sentido puro não costumem fazer parte da seleção tocada nos shows, Fear Satan já traz uma amostra boa o suficiente. A obra prima exibe um controle magistral de volume, numa jornada que varre todo o espectro entre quietude e barulho. No meio da música, um silêncio quase absoluto por cerca de dois minutos que toma o Circo Voador. Só para logo em seguida a banda retornar com um som abrupto dos mais ensurdecedores da noite, perto de encerrar o show. Mesmo na seleção da setlist esse controle também se mostra presente em cada uma das outras músicas. Mogwai, e ao vivo mais ainda, tem quase a construção lenta de uma banda de slowcore. Gerenciando tensão e alívio, a progressão dura quanto for preciso para levar à liberação esperada - algo inconcebível na música de rádio, projetada e programada para ser eficiente, econômica e condensar conteúdo sem ter silêncios "despropositados" no meio.

John Cage tinha uma relação com o silêncio melhor do que ninguém. Foi ele quem compôs 4'33", uma peça musical cuja partitura ordena que seu intérprete fique parado em frente a um instrumento (originalmente piano, mas é permitido qualquer outro) em silêncio por quatro minutos e meio. Interpretada pela primeira vez por David Tudor em 1952 no Maverick Concert Hall, as reações do público envolvem, de vez em quando, algumas risadas, mas Cage estava fazendo uma investigação filosófica. Ele não acreditava no vazio, e sabia da impossibilidade de se alcançar o silêncio absoluto desde que entrou numa câmara à prova de som e sem nenhuma superfície reflexiva, chamada câmara anecoica, na universidade de Harvard. Naquela experiência, achando que encontraria o nada, ele relatou que ouvia dois sons persistentes: um agudo e um grave. Explicaram a ele que o agudo era o seu sistema nervoso, e o grave era a pulsação de seu sangue. 4'33", portanto, é na verdade uma incorporação dos elementos exteriores que fazem parte de cada ocasião específica em que é tocada. Nos ouvintes, por sua vez, podemos imaginar que acontece um movimento de levarem sua consciência a explorar seus arredores, nutrindo uma percepção crescente do tempo e espaço em que se encontram. A intenção do compositor em suas obras musicais, para além de 4'33", era que os sons seguissem um ao outro numa sequência livre, não-artística, sem uma "cola" harmônica. As obras eram estruturadas puramente como duração entre eventos, o que significa que havia durações entre eventos dentro de uma mesma obra e, entre uma obra e a seguinte, a demarcação era simplesmente a existência de uma duração maior. O silêncio, portanto, é o próprio elemento constituinte que permite a uma obra se reconhecer enquanto tal.

O que isso nos diz sobre Cage é que ele tinha perfeita compreensão do fato de que o tempo tem densidade. Como desenvolvi no texto 7, as coisas do mundo têm uma espessura, e essa é mais uma manifestação. Era isso que me prendia à aula de yoga do Gilberto e não a outras: um vídeo que respeitava a tangibilidade dos detalhes que o compunham, um ritmo que não se impunha ao desenvolver natural dos fenômenos que aconteciam ali, um tratamento de produção que não tentava colocar filtros entre nós e essa experiência. A física já provou que o espaço-tempo se comporta como um tecido e John Cage se torna, então, praticamente um fenomenólogo ao deixar que esses relevos existam. Suas obras não eram minimalistas - apesar de usarem silêncios, ele sequer foi simpático ao minimalismo quando este surgiu. Cabe lembrar, a minimização é meramente o lado inverso da maximização, e ambas são subordinadas ao domínio otimizador. O minimalismo supõe um rigor que busca o isolamento, mas Cage não era econômico em suas composições porque não só aceitava os detalhes, que são inevitáveis, mas direcionava o palco para eles, numa intimação a colaborar. Esse mesmo respeito - ou antes, no meu caso, até uma fixação - pela densidade intrínseca do espaço e do tempo, portanto, é o que me ajuda a entender o motivo de eu nunca ter ficado confortável ao acelerar áudios do zap. Os intervalos irregulares de cada prosódia, a espessura da voz e o peso dos elementos sonoros que aparecem no entorno conferem a cada experiência de fala uma singularidade que é simplesmente violento transgredir. Nos tempos atuais de aulas em vídeo, imagino alunos chegando perto de uma prova, com tempo limitado e bibliografia em acúmulo, e concluo que deve ser este o verdadeiro remorso da procrastinação: a necessidade de acelerar, rompendo o fluxo das coisas, e a consequente perda da chance de se relacionar com o objeto enquanto experiência vivida, restando a condensação de conteúdo, sem nenhuma folga ou contemplação. Situação que acontece com diversas outras pessoas, pasmem, não por necessidade acadêmica, mas por escolha pessoal, seja na seleção de vídeos de yoga para assistir, formas de atravessar um sinal ou músicas para escutar.

domingo, 28 de setembro de 2025

#12 - Grouper e a observação de objetos voadores

Fui a um passeio guiado de birdwatching no Jardim Botânico e entendi o álbum Alien Observer

"Won't tell a single soul that my soul's gone
It's hard to write this song"- Carissa's Wierd

Existe algo de tentador nas abduções. Em muitos casos, também algo de inevitável. Nunca saiu de mim a forma como Kiyoshi Kurosawa retrata, no filme Pulse, a próxima vítima do transe que se destina a tirar sua alma. Como um sonâmbulo, a pessoa mira um ponto fixo e se move em direção a ele com andar catatônico. Alguma gravidade no olhar, algum fatalismo sombrio que sequestra o ambiente e torna o ar escuro e denso. Tudo nos arredores é mistério, e uma consciência, suspensa no recinto, parece guiar os passos de um corpo zumbi que já não pertence a si. Essa cena não é muito diferente do início dos relatos de abdução, com a diferença de que nestes o abduzido "retorna" ao corpo anterior. Frequentemente com alguma espécie de trauma temporário, principalmente na forma de um atordoamento, um lapso de memória com flashes vagos do ocorrido, e a sensação de que o tempo não passou. A consciência retorna ao corpo mas já não é a mesma, porque o abduzido é em grande medida transformado pela experiência. Relatos de uma percepção maior de unidade com o universo também são frequentes, com o choque temporário, conforme dá espaço à lenta readaptação, sendo substituído por uma espécie de paz interior. No filme, as pessoas se tornam mais propensas a entrar no estado de transe a partir de algum evento recente de sua vida que tenha despertado nelas um sentimento de solidão - a elaboração de um luto, por exemplo. Também por isso o desejo de abdução aparece tanto nas diferentes expressões de arte.

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Era mais ou menos assim: Thom Yorke, do Radiohead, cantando que é incompreendido, como faz com alguma frequência. O título da música, Subterranean Homesick Alien, foi dado a partir de uma do Bob Dylan sem nenhum motivo aparente. Mas a sensação de isolamento é capturada com beleza, tanto na letra (“I’d tell all my friends but they’d never believe me/ They’d think that I finally lost it completely/I'd show them the stars and the meaning of life/ They'd shut me away, but I'd be alright”) como na instrumentação que em tudo remete aos sons de asteroides e espaçonaves - é a faixa que realmente começa a dizer a que veio o disco OK Computer, e que melhor ambienta a distopia. Em todo o seu percurso, no entanto, temos uma experiência que é sempre limitada pela lembrança de que se trata de uma peça artística. A temática alienígena é objeto da obra, mas como meditações de um eu-lírico que tenta se conectar a episódios de nossa memória. Aí está a grande conquista de A I A: Alien Observer - em vez de nos fazer acessar sentimentos de solidão por lembranças, ou imaginar cenas de contato extraterrestre, o disco da Grouper é abdução que acontece em tempo real. Enquanto Subterranean descrevia um desejo de contato e narrava em detalhes as cenas imaginadas, Alien Observer, sem narrar uma sequência de episódios, foca no olhar e no sentimento. Note-se a faixa-título - são três menções na primeira estrofe ao olhar e duas na segunda estrofe ao sentimento:

"Look into the night sky
Looking towards the big lights
Looking out to be free
Suddenly something passes by my window

I feel it in the darkness
I get to feel it sometimes
Following the street lamps
Wondering how we're meant to leave behind

Going to take a spaceship
Fly back to the stars
Alien observer in a world that isn't mine"

Olhando pela perspectiva musical, a diferença se mantém. Por mais eficazes que tenham sido os efeitos sonoros sobre a instrumentação de Subterranean, a música nunca foi realmente imersiva, porque ainda sabemos que é um álbum de rock. Mas em Alien Observer, desde a primeira faixa uma presença se impõe com tanta força, e um sentimento de iminência toma conta com tanta gravidade, que somos levados a esse próprio estado de transe, ao estado de quem, mesmo sem saber o que está acontecendo, sabe que foi inscrito à força em algum tipo de missão. As camadas de vocais frágeis com reverb, instrumentos em drone e retoques delicados de sons assombram a obra ao mesmo tempo que criam beleza: talvez a beleza seja assombro, não assombração. Com isso, o disco apenas sugere impressões do que é esse anseio sem nome, sem objeto conhecido: miramos no alto porque, sem saber sobre esse objeto, julgamos ser mais provável encontrá-lo no infinito acima de nós do que no chão que está logo aos nossos pés.


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Por definição, o escapismo requer distâncias. Nosso olhar, portanto, é levado a lugares longínquos: se estamos na terra, procuramos algo no alto; mas se estamos no alto, o desejo é pela terra. Muda-se o ponto de referência, mas nunca o fato de que essa relação envolve dois objetos, num plano vertical: um aqui e um lá.

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Cortázar tem um conto chamado A ilha ao meio-dia, que narra a fantasia de fuga de um comissário de bordo italiano. Cercado por passageiros rudes, escalas exaustivas e uma vida pessoal medíocre, ele já está dissociado de sua experiência, e percebe os eventos que lhe atravessam a vida como borrões distantes. Normalmente o símbolo de um devaneio de liberdade, o ápice de uma sensação de infinito, neste conto a altura é a própria prisão, e o avião é enclausuramento. A partir de certo dia, o comissário passa a avistar pela janela do avião uma pequena ilha bem no meio do azul categórico do mar, invariavelmente ao meio-dia quando sua linha Roma-Teerã sobrevoa a Grécia. Uma obsessão se desenvolve, ele persegue todo o conhecimento disponível sobre a ilha grega, que descobre ter dezenas de habitantes, rústicos como suas perspectivas de liberdade, e traça planos, sempre estéreis, de visitá-la. A perda da percepção de realidade é ressaltada no texto: “Nada disso fazia sentido, voar três vezes na semana ao meio-dia sobre Xiros era tão irreal como sonhar três vezes por semana que voava ao meio-dia sobre Xiros”. A ilha o abduziu. 

Eu tinha duas lembranças mais marcantes sobre este conto antes de relê-lo. Uma não vem ao caso mencionar. A outra, acima de todas as lembranças, é o azul vibrante do mar visto pelo limitado retângulo da janela do avião, que, como abduziu o comissário, também me abduziu. Eu me lembrava desse conto somente naquele tom de azul. Azul e mais nada. 

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Os passeios de observação de aves são conduzidos no Jardim Botânico, há mais de vinte anos, pelo ornitólogo Henrique Rajão. Todo último sábado do mês, se não houver chuva moderada, os interessados se reúnem em frente ao cactário e formam o que será o grupo do dia. Interessado em investigar as mecânicas do olhar entre a terra e a altura, e após semanas recentes nas quais estive mais naturalmente mais obcecado do que o comum pela dupla de discos A I A, decidi, como manda o bom jornalismo, ir a campo. Sem conseguir companhia, me preparei para frequentar o passeio sozinho. Considero que tenho amigos, mas talvez nenhuma amizade suficiente para que alguém se disponha a estar pontualmente às oito no cactário. O dia estava nublado, com alguma possibilidade de chuva leve. Dediquei uma quantidade séria de horas de sono como preparação para o evento. Um post no Instagram dos "Amigos do Jardim Botânico" indicava levar chapéu e binóculo, mas eu não os tinha. Munido de uma garrafa d'água que mal cabia na pochete, roupas curtas e um repelente vencido, encarei de frente a aventura solitária que me esperava, e da qual não sabia o que esperar.

Chegando ao lugar, notei que havia subgrupos de pessoas que já se conheciam. Ainda que não tivessem combinado de ir juntas, lembravam de interações passadas, talvez dando sequência a um assunto interrompido. Minhas mãos vazias contrastavam violentamente com as dos outros participantes, equipados com binóculos ou câmeras profissionais com lentes tão compridas que pareciam tubos projetados em minha direção, e os poucos que não portavam nada estavam em dupla ou trio com alguém que portava. Lembrei imediatamente dos "busólogos", pertencentes a alguma sociedade secreta de mesma natureza, mas estudiosos do ônibus, seus pormenores técnicos e especialmente o gozo sensorial que obtêm ao olhar para o veículo. Entre os observadores de pássaros predominavam roupas de cores que orbitam o verde escuro, o marrom e o bege, como algum código, enquanto eu estava todo em tons de azul - azul e mais nada. Fazia frio. Minha combinação de roupas curtas e repelente vencido fracassou mais rápido do que eu esperava: em poucos minutos já tive tempo de ser acolhido por algum tipo estranho de mosquito ou formiga que esculpiu em meu tornozelo uma marca de sua presença. Eu era lembrado disso com muita frequência, porque o incômodo da picada não era limitado como a de um pernilongo. Até nisso as pessoas tinham melhor preparo, porque a maioria já vestia calças suficientemente longas para proteger, junto com as meias, a frágil área corporal desejada pelos insetos. Me posicionei um pouco à margem desses grupos, como se estivesse em uma das últimas fileiras de uma sala de aula em relação a quem eu já identificava ser o guia, centralizado e atraindo a atenção de membros de várias dessas ilhas de pessoas, que com ele quebravam o gelo antes do início. As roupas que ele vestia estavam em algum lugar entre Indiana Jones e o doutor do Jurassic Park, uma camisa verde de botões de um tecido robusto, uma calça cargo em verde ainda mais escuro, e um tênis preto do tipo que suportaria todo tipo de intempérie. Ainda assim, seu visual parecia leve, adequado para uma manhã de sábado. Em parte isso se devia à mochila simples que levava nas costas e impedia que o resultado ficasse tão pitoresco como faria, por exemplo, uma bolsa bege a tiracolo. E, adicionalmente, essa impressão de leveza era reforçada pela ausência de chapéu, em conformidade com os demais participantes. Nisso eu quase estive em sintonia com eles pela primeira vez, porque também pareceram desconsiderar a recomendação do post, talvez devido ao céu nublado. Mas muitos estavam de boné, que eu tinha em casa e não cheguei a raciocinar que podia cumprir função semelhante.

Eu refletia sobre como era curioso que, até ali, o que ocorria no chão - essas interações e amenidades entre os observadores - fosse o que atraía a atenção de todos, quando o grande evento, sabíamos, nos aguardava no alto. Nesse momento o guia começou a falar. Tinha uma voz calma que se mesclava muito bem com aquele silêncio matinal cortado apenas por ocasionais cantos de pássaros, o mundo parecendo mais lento. "Não é necessário saber os nomes dos pássaros. Eles nos comovem primeiro e, se buscarmos saber os nomes, isso é só depois. Ninguém se comove por saber os nomes, mas pela presença física dos pássaros, pelo seu canto. O conhecimento puro não adianta de nada, porque se ele não nos toca ele não nos pertence". Sem saber, o professor, como o chamavam, possibilitou ali que eu finalmente entrasse no estado de espírito devido. Eu já havia percebido, entreouvindo as conversas prévias, que alguns colegas detinham esse tipo de conhecimento. Mas agora eu me sentia autorizado a abstrair do que fosse necessário no meu entorno e, com isso, deixar meu olhar viajar no plano vertical. 

*

Com o nome de Grouper para o projeto, Liz Harris é um acontecimento difícil de colocar em palavras. Felizmente, palavras também não são sua principal maneira de expressão, apesar de que, como visto, são muito bem articuladas quando necessário. Crescida numa espécie de comuna mística que se inspirava em preceitos espirituais pontificados pelo guru George Gurdjieff, vivia ora com seus pais e três irmãos, ora com outras famílias que moravam em outras terras mas ainda dentro da comunidade. Ela não conhecia ninguém de fora. Desertou o grupo com o pai aos 11 anos, e os desertores usam tipicamente um nome pejorativo para os membros: "groupers", porque a comuna era conhecida como "the Group". Mas inegavelmente a infância em ambiente rural influenciou as obras introspectivas, de instrumentações aéreas, e as temáticas que flertam com o cabalístico. A beleza de suas composições gerou uma série de trabalhos colaborativos. Há aqueles com os artistas de maior sucesso, como Roy Montgomery e Xiu Xiu, e os trabalhos mais interessantes, como com Inca Ore e com Jefre Cantu-Ledesma - a dupla usou o nome Raum. Na carreira solo, a dupla de álbuns A I A é, sem dúvidas, o que mais deve ser celebrado. Depois de um disco - Dragging a Dead Deer Up a Hill - que, embora interessante, é o menos característico de sua obra, sendo o que mais se aproxima do formato de canções e pendendo para um folk acústico com muito uso de violão, os álbuns A I A retornaram com o maior uso do drone e de ruídos. Alien Observer é uma obra autossuficiente, que cria sua própria atmosfera de maneira completa e magistral. Dream Loss, por outro lado, não assume uma temática tão específica quanto o anterior, e isso se reflete na música. Assim como o tema, a música presente no disco é bem mais abstrata que aquela em Alien Observer. Uma forma possível de enxergá-lo é como um complemento, e isso me lembra, para não deixar de citar Eno, a relação entre Apollo e Apollo: Atmospheres and Soundtracks, este último lançado depois como um tipo de extensão, de estudos subsequentes habitando o espaço criado no primeiro disco. Como dupla, A I A é perfeito de se escutar em sequência, e Dream Loss consegue enriquecer ainda mais o fenômeno de abdução proporcionado por Alien Observer. 

"Já tentei passar para outras pessoas várias vezes nesses vinte anos", nosso guia falou sobre a liderança do evento. As dificuldades de comprometer as manhãs de sábado por tanto tempo são imediatas de se imaginar, mas é claro que houve humor nessa fala. Avistar aves é a vida de Rajão, e em suas falas o amor pela atividade é nítido do início ao fim. 

O primeiro pássaro que vi no dia foi ainda bem perto do cactário, pouco depois do discurso inicial. Não me lembro do seu nome. Ouvi fragmentos de falas de vários participantes do grupo, e espalhou-se uma agitação. "Onde?", "Acho que vi um!", "Escuta o barulho dele, é por ali", "Segue a linha do meu braço", "Bem na reta daquele galho principal". Percebi rapidamente que o evento não seria só uma experiência solipsista de observação. O grande tema do dia não era o olhar, mas os convites ao olhar. Era isso: o passeio de observação de aves é um evento cartográfico, que trata de situar o outro no mapa do próprio emissor, e ao mesmo tempo se situar no mapa do outro. É um esforço de linguagem. Com isso, cria-se um terceiro mapa, que não pertence a nenhum dos dois, e isso se dá quando os olhares convergem para o pássaro. Como em Persona, do Bergman, é magia e transfiguração, é tornar-se o outro a partir da fusão de olhares.

Em certo momento, o professor nos tentava fazer ver uma saíra-militar, lindo pássaro colorido em tons brilhantes de azul, vermelho e verde. É a única ave do passeio cujo nome eu registrei, e também a única que não vi a olho nu, mas com o equipamento de alguém. Enquanto tínhamos dificuldade em localizá-lo, apesar do truque que Rajão usava em um aplicativo de celular para replicar sons de pássaros que os fazem permanecer por perto, o velho Heleno conseguiu uma boa foto da saíra com sua câmera. Segui o conselho do guia: "quem não conseguiu ver, veja pelas lentes do Heleno".

Lembrei que, por muito tempo, vivi um dilema pessoal. Acredito que seja um dilema comum e que acompanha a tendência de maior academicismo que se forma ao redor da arte. Estamos pensando demais sobre as coisas, evidentemente. E antigamente eu pensava, com medo, que escolher o caminho de escrever sobre arte, em vez de criar arte, seria a vitória definitiva do meu lado interno crítico sobre o sensível, o soterramento de qualquer resquício de emoção. O que percebi depois é que existe beleza no convite ao olhar. Apontar para que alguém enxergue beleza é também produzir beleza.

*

O problema é que o disco da Grouper não é somente sobre olhar, mas também sobre sentimento. E, por mais que eu estivesse fazendo grande progresso no âmbito do olhar, não conseguia me livrar de um certo sentimento. Acho que era o de perceber a fugacidade de tudo isso. Que as convergências de olhares e fusões do ser são no máximo temporárias, como canta Phil Elverum, do The Microphones: "in it we swim, sometimes beside, often apart". Que os pássaros são meras aparições e avistamentos, que suas presenças raramente duram para olharmos a tempo, antes que fujam da posição estática que nos permitia vê-los num galho, entre uma e outra folha. Sua fuga retoma a letra de Alien Observer: "wondering how we're meant to leave behind". E, finalmente, que os pássaros são relativamente pequenos para ver a olho nu. Seu avistamento se traduz em ter conseguido ver uma coloração nas penas de um pássaro ao longe, ou distinguir vagamente uma forma, como quem vê um artista de muito longe do palco, como o comissário de bordo no conto do Cortázar que avistava a ilha.

Em algum momento o professor contou que o canto dos pássaros não vem "de fábrica", mas é aprendido, tanto que os pássaros do Rio costumam ter cantos menos sofisticados do que em outros estados, por nenhum motivo específico além do acaso, numa espécie de sotaque próprio que desenvolvem os pássaros que crescem em cada ambiente e que, infelizmente, os cantos mais sofisticados costumam ser daqueles mantidos em cativeiro. Por mais que eu já tenha superado há muito a preocupação um tanto quanto juvenil sobre a viabilidade de se fazer boa arte sem alguma experiência com o sofrimento, não consegui deixar de me perguntar se a obra de Liz Harris só consegue atingir tamanha beleza por causa da infância que viveu e das noites que passou olhando para as luzes do céu noturno, buscando ser livre.

Todos esses sentimentos me impediram de superar as diferenças que antes me incomodavam. Olhei ao redor e voltei a notar as diferenças de cores nas roupas, de preparo que tivemos para o evento, de conhecimento técnico dos pássaros que é tão maior nos "busólogos das aves" com suas assustadoras parafernálias de observação e fotografia. Mentalmente comecei a pensar neste texto que escrevo, revisitando as anotações, indo e voltando delas para o que me lembrava dos álbuns da Grouper, e vice-versa, e nisso me detive novamente na faixa Alien Observer. Percebi a coisa mais óbvia sobre ela, uma contingência da linguagem que não tinha percebido antes e me mostrou que seres extraterrestres, exceto a rápida menção a uma espaçonave, não ocupam espaço nenhum nessa música. Em "Alien Observer", "alien" não é o objeto de um observador, e sim adjetivo. O título do disco não se refere à observação de alienígenas, mas à observação feita por uma pessoa alienada. O alien é o próprio observador. 

Começou a chover. A previsão do passeio era durar até meio dia, mas cerca de onze e meia o grupo já se mostrava um pouco mais disperso, tendo coberto as partes do parque consideradas importantes, e já não era transmitido um grande volume de informação pelo professor. A chuva foi a grande deixa para que movimentações tímidas de ir até a saída se iniciassem. Percorri esse caminho já correndo, com o aperto da chuva. Minhas pernas descobertas sentindo frio, o repelente vencido se diluindo na água.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

#11 - Música ambiente: isso ainda vai ser grande no Brasil

Nativo da eletrônica, Chediak lança "Música Ambiente do Brasil", colaboração de artistas dos 27 estados

Eu estava no ilustre festival Rock the Mountain, em Itaipava, quando conheci uma sala de descompressão. Uma droga tinha batido errado em uma amiga e alguém do staff do evento recomendou que ela usasse o espaço brevemente para se recuperar. A sala foi criada principalmente para acolhimento à neurodiversidade, não para recreação, mas quando me contaram do lugar as minhas orelhas se levantaram imediatamente. Fui remetido às "chill-out rooms", cubículos absolutamente históricos que marcaram a época dos anos 90 nas raves do Reino Unido. Esses, sim, lugares que tinham como função primária "dar uma relaxada com os crias". Eu, que não sendo fumante sou o exato público alvo das áreas de fumante, eu que olho pelas janelas dos ônibus e escuto música ambiente e fazia cabanas de lençóis em casa antes de dormir, soube desde que tive contato com as histórias das chill-out rooms que elas são meu lugar espiritual, e lia os relatos com a saudade de um tempo impossível, com o fascínio digno de um exilado de sua Meca. Espero estar perdoado, então, por não ter resistido a entrar por dois minutos quando passei em frente à sala de descompressão. Estava praticamente vazia, acho que não atrapalhei ninguém. Precisava ter um vislumbre do que era estar numa chill-out room da Londres dos anos 90, e isso era o mais perto que eu vou conseguir talvez em toda uma vida. Minha breve permanência lá dentro foi tão mágica quanto eu tinha idealizado, embora o aspecto de "quarto branco do BBB" tenha sido um pouco perturbador.

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1990: a música ambiente e a música eletrônica no Reino Unido se entrelaçam. Incomodado com as drogas e a "desordem" da riquíssima cena de rave e acid house que pulsava no país, o governo britânico publicou uma lei que proibia a realização de ajuntamentos de 20 ou mais pessoas para ouvir música "inteira ou predominantemente caracterizada pela emissão de batidas repetitivas". Como qualquer ato de repressão, as respostas foram variadas. Num lado do espectro, a linha de frente: a onda que se criou de raves ilegais, em porões, em armazéns, em áreas quase rurais como em torno da M25 London Orbital, estrada que circunscreve a cidade de Londres. No meio-termo, uma solução mais ao estilo Nathan Fielder: um adesivo na capa do novo EP ("Anti") da dupla Autechre avisava que as músicas foram programadas em bateria eletrônica de tal forma que não se enquadrasse na descrição de "batidas repetitivas". "Nenhum par de compassos contém batidas idênticas, e o EP pode ser reproduzido abaixo do limite permitido pela lei". No entanto, eles também aconselhavam que DJs que planejassem tocar as músicas tivessem "um advogado e um musicólogo presentes a todo momento para atestar a natureza não repetitiva da música em caso de importunação policial". E, como resposta menos extrema, a repressão deu vida às boates em baixa frequência, para escuta de discos de ambient, e impulsionou as chill-out rooms. Embora o uso de eletrônicos na música ambiente já estivesse consolidado em álbuns de estúdio desde o nascimento do gênero (Brian Eno, Kraftwerk, Tangerine Dream), foi com essas salas que ela encontrou sua personalidade no mundo físico, criando uma cena adjacente à das raves. Surgiu ali uma relação de simbiose entre corpo e música ambiente, entre dança e estúdio, pela qual as recém-descobertas formas físicas de expressão e o que viriam a ser os sons do ambient house influenciavam um ao outro. A música ambiente não seria o que é hoje sem que sua história tivesse a participação das festas de música eletrônica.

Tome-se como exemplo as "Land of Oz Sessions", que durante seis meses ocuparam, toda segunda-feira, a casa noturna "Heaven", no centro de Londres. Enquanto o DJ residente ocupava a pista principal, era no discreto andar de cima que acontecia o mais interessante. Na sala VIP, foi confiado a dois DJs relativamente desconhecidos o direito de cuidar de um segundo set, nessas sessões de segunda-feira, dentro da chill-out room da boate. Eram Alex Patterson e Jimi Cauty (este também membro da The KLF) - que viriam a ser a lendária dupla The Orb. Eles usavam como matéria prima todo tipo de gravação possível, misturando sonoridades que variavam entre os mais extremos, o único padrão sendo a diminuição do volume e a remoção das batidas: "Tinha um núcleo de umas oito ou nove pessoas que sempre iam e ficavam sentados na frente a noite toda ouvindo o que fazíamos. E então gradualmente foi ficando maior, dependia. Em feriados ficava lotado, até o limite de cem. Os DJs gostavam porque podiam sentar e falar de trabalho, em vez de estar numa sala abarrotada com música alta tentando falar por trás da cabine. O motivo de ter sido tão popular é que ninguém tinha pensado em fazer isso numa boate desde o começo dos anos 70. Eu às vezes passava quatro ou cinco horas tocando coisas da fase bem inicial do dub reggae. Você não precisa dançar, é só balançar a cabeça. Isso ainda é ambiente pra mim. Tínhamos telas brancas pra colocar visuais também. Vídeos caseiros de patos no parque, a gente ia atrás de tudo." Hoje, um usuário do Reddit relata que foi salvo de uma bad trip quando frequentava uma dessas salas. Ele foi levado pelos amigos ao lugar, que passava o documentário Baraka e, segundo conta, a experiência de absoluto desespero se transformou em se sentir um com o universo. Curiosamente, foi uma segunda lei que iniciou o declínio destes espaços em Londres: a proibição do fumo em recintos fechados, nos anos 2000. No Instagram, um movimento tenta hoje um revival das salas em Amsterdam: "bring back the chill out room" (@bbt.cor).

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2025: a música ambiente e a música eletrônica no Brasil se entrelaçam. "Discos Flutuantes" foi o nome escolhido por Pedro Chediak para o selo de Ambient inagurado com o lançamento. Criador multiprojetos residente em Juiz de Fora, ele pode ser definido talvez como um workaholic da cena eletrônica underground. Tem as facetas dos trabalhos como produtor, como DJ, como organizador (as compilações da Speedtest e, agora, "Música Ambiente do Brasil"), como co-fundador (com Diogo Queiroz) de um selo de eletrônica que é também uma festa, e com seus lançamentos autorais - o mais recente, "Música Elétrica", é consideravelmente oposto a um álbum de ambient. Desses trabalhos, o mais reconhecido até o momento é com a SPEEDTEST RAVE. Baseada num conceito de música eletrônica futurista e acelerada, a festa já ocorreu dezenas de vezes no país, incluindo múltiplas edições em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. Mais cedo este ano, a rave teve sua primeira euro tour, que envolveu arenas do Reino Unido, Espanha, Alemanha, Portugal, França e Suíça. Como selo, SPEEDTEST já tem dois álbuns em que colabora, em cada faixa, com nomes consolidados e emergentes da música eletrônica brasileira. Mas a complexidade da figura de Chediak apareceu há três anos, quando iniciou um projeto musical paralelo: A.A.R ("Aprendendo a Respirar"), nascido da necessidade de reconexão interior e desligamento da velocidade do mundo externo - que, ironicamente, na SPEEDTEST é a ferramenta mesma de expressão. A.A.R tem três singles e um álbum, num estilo que lembra Hiroshi Yoshimura, Takashi Kokubo e Akira Ito em sua dualidade do uso de eletrônicos e sons gravados diretamente da natureza. O álbum foi feito "com sons do Brasil gravados durante dois anos", e agora seu título, Discos Flutuantes, é o que dá nome ao selo que promete mobilizar uma cena carente de público, identidade e organização. O selo diz que aproveitará toda a estrutura construída pela SPEEDTEST RAVE, e isso é ótima notícia para as perspectivas de produção, divulgação e realização de eventos de ambient. 


Com 168 minutos de duração, a abordagem mais sensata para "Música Ambiente do Brasil" não poderia nunca ser a de um comentário faixa por faixa, mas antes uma espécie de mapa que possa ajudar um ouvinte leigo a se enveredar por referências similares, a partir das que mais lhe agradaram. As menções que se seguem não são, de maneira nenhuma, destaques (numa compilação de faixas que são todas bem produzidas), mas faixas que me evocaram correspondências mais diretas com outras obras de maior projeção. Os objetivos disso são dois: primeiro, demonstrar a amplitude de influências que alimentaram as músicas escolhidas para a compilação; segundo, recomendar artistas, mesmo que estrangeiros, porque embora se trate de um texto que celebra a música brasileira eu entendo que o sucesso da música ambiente por aqui dependerá também da formação de uma comunidade ouvinte. Quem gostar, por exemplo, de "indelével", em especial dos apaixonantes assobios do sintetizador que entra na metade da faixa, deverá gostar também dos adereços cósmicos presentes na música conhecida como New Age, como na obra do japonês Kitaro. "saudades david lynch" e "sonhos*(33)" lembram com a coloração de seus sintetizadores e a leveza dos instrumentos o álbum Mia Gargaret, de Gia Margaret. "vovó" e "congonhas do norte", por sua vez, exploram o mundo das gravações de campo, incorporando fragmentos de interações humanas e da vida rotineira. Momentos do álbum Kagayaki, de Masakatsu Takagi, e da banda Acessórios Essenciais, do extinto selo Cloud Chapel, usam de artifícios parecidos. Enveredando mais para um Dark Ambient, "cefaleia", que faz jus ao nome, lembra o álbum Mirages, de Tim Hecker, sustentando uma atmosfera sombria e densa. Já "Sonho de Criança" é uma faixa mais para o Drone, reminiscente dos trabalhos de Stars of the Lid, e com sintetizadores suaves que aquecem a faixa. Indo para músicas mais esparsas, de menor ritmo, "flores secas, ode ao sono" e "terra" criam atmosferas lunares que remetem a Apollo, de Brian Eno, e "distância" e "voar livre" poderiam estar em Surround, de Hiroshi Yoshimura. No extremo oposto, as obras mais eletrônicas: "memórias não binárias" entra com uma saw wave pesadíssima, e ao mesmo tempo extremamente melódica. Pela forma como constrói a estrutura da música e pela emotividade do clímax, quem se interessou por essa deve se deleitar com os arrebatamentos que Uboa consegue provocar em momentos de "The Origin of My Depression". Em "aurora", do DJ PS2 Desbloqueado (que levaria do blog o prêmio Nomes de DJ, se existisse um), traços do álbum "Love Is A Stream" de Jefre Cantu-Ledesma aparecem numa imponente distorção que preenche a paisagem sonora. A música Perfect Night do artista 7038634357 também tem um glitch como esse, que pode interessar. Em "e a íris se abre", o que parece ser uma guitarra digital é picotada num efeito muito parecido com os de Rachika Nayar (resenhada aqui no texto 4!), capturando como um todo a atmosfera do álbum The Trembling of Glass, mas principalmente a faixa Marigolds & Tulsi. Muitas outras músicas despertarão nos ouvintes referências próprias e lembranças. As quase três horas de disco merecem múltiplas reproduções, como trilha sonora para atividades diversas ou como objeto de atenção exclusiva. Seja como for, é inevitável que momentos pontuais e sutilezas espalhadas pela obra se façam captar pela sensibilidade e subam à superfície da consciência. 

A música ambiente já é grande no Brasil, isso é evidente. A nossa música, instrumentalmente, já é uma das mais evocativas e, mesmo no que não se proclama como ambiente (quase tudo), pode-se pinçar no nosso acervo diversos momentos de instrumentações esparsas, texturas e ambiências vívidas e, como idealizou Brian Eno, música que se insinua nos ambientes como um perfume ou uma coloração. Quando se pensa a partir disso, nossa música ambiente é na verdade uma das mais ricas. O problema, me parece, é que além de uma falta de comunicação entre membros de um mesmo ambiente colaborativo, e de criadores do gênero que se reconheçam como tal, o limbo identitário é também uma questão de nome. Na falta de um nome, o "Cânone" ocidental e do norte dará aquele que preferir. Como seria chamado lá fora o que faz, há mais de uma década, o grupo Metá Metá? Em sua ignorância, talvez se refiram aos sons feitos no Brasil como "tribais", ou com muita sorte "world music". Que nome se dá aos álbuns esotéricos de Egberto Gismonti, como o "Duas Vozes" que fez com Naná Vasconcelos, ou a musicalidade holística de Hermeto Pascoal? Desse jeito, é claro que parece que não temos música ambiente. Um país, no entanto, com uma combinação tão única de influências convergindo: a origem indígena, a cultura afro. Isso não é problema exclusivo nosso e não se mostrou irresolúvel. Veja-se o Japão, também embebido em tradições ricas de culturas ancestrais, com influências ritualísticas e do xintoísmo, mas que precisou do "Satie boom" para que a kankyō ongaku (leia o texto 5 deste blog para o desenrolar disso) trouxesse artistas que batiam no peito, escavavam sua própria cultura, e diziam: "essa é a música ambiente do Japão". Por aqui, não há sequer uma ideia bem definida do que é o Brasil (afinal vivemos na "república fábio brazza", como argumentei no texto 7), quanto mais do que seria a música ambiente brasileira. Quem iria dizer que aquilo que existia no Japão, antes do Satie boom, não era música ambiente? Ninguém dizia que não era, mas também faltava quem dissesse que era. Aqui no Brasil, entre os que dizem e os que não dizem que são, há coisas muito interessantes acontecendo: a enormidade de colaborações de Juçara Marçal, as promissoras colagens sonoras de Mbé (o álbum Rocinha é dos melhores que surgiu recentemente), a modernidade de Maurício Takara e Carla Boregas, as músicas espectrais do selo Municipal K7, os rituais documentados no disco "Gnose", de Acavernus e Yantra, a eletrônica de Valesuchi, os trabalhos sutis de Daniel Stringini. Com sonoridades mais sombrias, há Kovtun, Mount Shrine e o dungeon synth de Iamí. Há poucos meses, Numa Gama (que também tem uma obra empolgante) organizou duas edições de um evento destinado a promover formas delicadas de escuta, com DJ sets que envolveram Kalozin, Yan Higa e Aline Vieira. Academicamente, nosso repertório ainda é limitado. Com influência da muzak (introduzida no nosso texto 2), a maior parte das pesquisas ainda é voltada para a música ambiente de lojas influenciando o comportamento subliminar dos consumidores, consequência de se viver num país de publicitários.

No nosso caso, é mesmo necessário nomear? Para uma música que é, por essência, fugidia e vaporizada, pode fazer sentido querermos que escape também ao white gaze e evitar colocar nela um rótulo. Talvez a descrição do Discos Flutuantes tenha resumido bem: "sons do Brasil". E até o argumento da falta de identidade poderia ser questionado, com as micro-comunidades formadas em torno dos acontecimentos musicais que sequer se preocupam com sua catalogação. Mas seja como for, o problema persiste: no mínimo o de plataforma. Eu acredito que é importante nomear as coisas. Que com isso cria-se uma força que de outro jeito não existiria. Chediak chegou até "Música Ambiente do Brasil" por meio de uma chamada aberta (divulgada no blog!) pela qual, por meses, criadores do Brasil puderam submeter seus projetos com ideias do que seria a música ambiente brasileira. A divulgação foi ampla, embora ainda me pareça natural que, dado o núcleo inicial de onde se difundiu, haja uma predominância de obras mais inclinadas à eletrônica. O resultado foram mais de duzentas faixas recebidas, com a escolha de sessenta e uma (além do próprio Chediak, que colabora através do A.A.R). Com nomes mais estabelecidos, como Mari Herzer, Julio Santa Cecilia (sob o nome Mondrongo) e Carlos do Complexo (este que já estava há tempos na lista de resenhas do blog), e em sua grande maioria artistas ainda de pouca projeção, esboçou-se um traçado do que esse grupo de pessoas imagina para uma possível música ambiente brasileira. Pela abrangência nacional - tem colaborações de todos os estados -, a relevância e o potencial desse disco, e do selo Discos Flutuantes, como um divisor de águas parece indiscutível. Aproveitando a terminologia de divisores de águas e de sons da natureza: se estamos falando de ambiente, a compilação começa a criar um ecossistema.

Quem zapeou pelos canais de TV no início da década de 2010 certamente esbarrou, mais do que gostaria, no comercial da Topper, que prometia: "Rugby: isso ainda vai ser grande no Brasil". O selo Discos Flutuantes acaba de lançar a compilação que de certo modo era um dos grandes sonhos deste blog, isto é, um projeto a nível nacional que articule, mais do que uma "cena", um ecossistema. Se hoje a música ambiente brasileira ainda depende do diálogo com outros gêneros para se desenvolver (as enormes vindas ao Brasil, neste ano, de Ichiko Aoba e Nicolás Jaar provam isso), a mobilização que tende a existir a partir de agora pode mudar o cenário. Um gênero que se defina como tal, que ande com as próprias pernas, e que encontre seu próprio modo de expressão. O rugby não deu certo no Brasil. Para nossa sorte, a Topper nunca disse que a música ambiente vai dar.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

#10 - Nicolás Jaar esteve na Sacadura: breves notas

Público não esperava os elementos de ambient e desrespeitou apresentação; se serve de algo, falatório transformou pista num interessante bar de escuta

Era aproximadamente meia noite e meia, as substâncias consumidas nos encontros pré-festa perto de chegar ao auge dos efeitos sobre as pessoas. A construção da onda coletiva, em parte, havia sido feita por Eli Wewentxu, que meia hora antes tentou conduzir a sensibilidade da pista ao estado desejado. Num horário em que as festas tentam surfar no pico de adrenalina colocando DJs de frequências mais altas, apostou-se em seu encantador violino conectado a um processador digital que distorcia seus sons e esboçava uma atmosfera. Agora Nicolás Jaar tocava, em frente à icônica parede de pedras (!) da Sacadura 154, as primeiras músicas de Archivos de Radio Piedras separadas para a noite. Talvez sem o público saber que se trata de um dos projetos mais importantes da história recente da música, o burburinho causado por uma massa de conversas ainda era muito, muito imponente, como também tinha sido durante a apresentação de Eli. Estava em primeiro plano absoluto. Alguns passos à minha frente um rapaz de camisa de malha da Foxton perguntou a um amigo: "Mano, cadê os drops?". 

Note-se: a Gop Tun é uma das melhores festas da eletrônica underground no Brasil, e provavelmente fiquei perto do amigo da Foxton por azar, porque o público não costuma ser esse. Mesmo assim, um set downtempo talvez seja pedir demais. Mas se eu poderia pensar que minhas impressões foram consequência somente da minha vizinhança, o ruído de conversa geral, propagado por toda a extensão da pista, eliminava qualquer dúvida de que não se tratava de um efeito de vizinhança. Nos dias anteriores ao evento, pelo volume de publicações buscando contextualizar a obra de Jaar e como se podia esperar algo "diferente", quase consegui sentir a preocupação dos organizadores - que não foi infundada, evidentemente. É importante enaltecer com muita ênfase a iniciativa da Gop Tun, porque não se sabe se, sem o convite deles, teríamos tido o privilégio de presenciar no Brasil o que presenciamos. Mas talvez em parte pelas férias universitárias, ou qualquer outra confluência de fatores, o evento deve ter sido amplamente divulgado como o "rolê de quinta", e a reputação da festa provavelmente contribuiu para a expectativa de que aquela noite entregasse o pacote típico da música dançante.

Foi com esse pensamento que a maior parte das pessoas se deslocou na última quinta-feira, dia 31, para a Sacadura, pista que já recebeu Carly Rae Jepsen, Mitski e choppadas de cursos de Direito. Atrás de uma bandeira do povo originário Mapuche estendida sobre a mesa (povo do qual Eli Wewentxu faz parte), Nicolás Jaar começou o set com um discurso que se esforçou para ler em português, chamando atenção para o abuso de décadas do governo chileno em relação às comunidades indígenas do país. Com uma Constituição que é a mesma desde os tempos de Pinochet, o Chile é o único país da América Latina que não reconhece seus povos originários. Uma tentativa de reformar a Constituição para instituir um Estado plurinacional e aumentar a representação das pessoas indígenas com cotas legislativas foi rejeitada em 2022 por maioria em plebiscito, e mesmo uma tentativa mais conservadora em 2023 foi descartada. Enquanto isso, a Lei Antiterrorismo continua em vigor e serve de subterfúgio para o Estado chileno promover o assassinato sistêmico de indígenas como repressão política - Salinas Hasbún, homenageado no show, está desaparecido desde 2022. Jaar também alertou para a preservação ambiental, cuja importância se pode ver na exploração promovida por companhias de mineração no país. Esses foram os momentos mais aplaudidos pela plateia. A causa palestina, que costuma ser a maior bandeira de Nicolás (até por causa de sua ascendência, de onde veio o sobrenome Jaar), não foi o foco, mas por uma escolha conceitual das apresentações de Radio Piedras, que resgatam um senso de identidade latina. Mesmo assim, a defesa da Palestina é tão central para ele que se mostra indissociável de sua obra, permeando integralmente os álbuns. Então foi natural que na música Rio de las tumbas, quando chegou a letra "y te hablo de Palestina", o público desse um novo grito. Essas foram as celebrações por motivos políticos. As demais vieram em todo e qualquer momento em que a música se aproximou da ideia pura de eletrônica. Trechos com batidas mais agressivas ressuscitavam a pista. Drops eram comemorados como se fossem gols, ou como aquele amigo que você botou para ver um ótimo filme do Michael Mann, mas que só se pronunciava nas cenas de tiro: "É isso! Era só ter mais disso!". Nesses momentos de mensagens políticas e beats que agradavam os mais bleep-bloop-heads, a atenção dos ouvintes conseguiu ser plenamente capturada. Em todos os outros, o cenário era de falatório total.

Nicolás Jaar sobre uma bandeira Mapuche


Acontece que ouvir música ambiente sem conversas em volta seria como ler um livro sem anotar em suas margens. É possível? Com certeza. Seria uma experiência mais pura? Sim, provavelmente. Mas desde Brian Eno, o acontecimento musical foi deslocado do ato de fazer música para o de escutar, colocando o foco totalmente no ouvinte. A música ambiente é o ápice da morte do autor, e em nenhum outro gênero o ouvinte se torna tão protagonista e se apossa tanto da experiência. Basta ver John Cage, que radicalizou a apresentação musical enquanto Fenômeno. Isto não é uma defesa do público da festa, que foi inegavelmente desrespeitoso. É uma constatação de que a música ambiente, por definição, sobrevive às condições mais adversas que se possa colocar. Aqui exponho de modo desnecessário uma história de origem minha: ainda na idade formativa, querendo me sentir visto pelo meus amigos em função do meu gosto musical, um deles desdenhou do que eu estava ouvindo chamando de "música de elevador" (que, por sinal, definitivamente não era). Eu não sabia ali, mas aquilo faria se abrir para mim um mundo. Descobrir que um termo pretensamente pejorativo existe como conceito e ainda reúne uma comunidade em seu entorno tem um poder sem precedentes de reelaborar a experiência. Todos que em algum momento tiveram uma relação com a música que de qualquer mínima maneira envolvesse identidade devem também sentir certo prazer na desaprovação de terceiros. Então por mais que a mensagem de Jaar (que, por não ser da escola mais purista do ambient, não deve ter uma visão tão romântica da desatenção) possa ter se prejudicado com o desdém da plateia, eu não conseguia parar de enxergar no que acontecia uma declaração de amor à história da música ambiente. Ver se repetir essa configuração de escuta difusa, esse gênero que como vapor escapa às tentativas de encarceramento, que como uma pluma desvia com graça das tentativas de controle, interpretação e categorização, só enchia de potência o que Nicolás Jaar fazia no palco, e o que os ouvintes que buscavam uma escuta atenta faziam cada um em seu lugar, apesar (ou talvez até por causa) da figura do terceiro que desaprova. Na metade final do set, durante Time for Us, quando a música já estava até mais conciliada com a demanda dançante (o show foi ficando gradualmente mais eletrônico), problemas técnicos paralisaram a apresentação por cerca de 10 minutos. "Lo siento", disse Nico, que junto com a produção tentava consertar o que ele disse ser uma dificuldade com a energia. Ficou com os demais membros da banda - Daniel Cataño, nos tambores, e Camilo Salinas, no piano - a tarefa de segurar as pontas e improvisar enquanto a conexão com o laptop principal não voltava. Com um entorno mais irritado e a intensificação das conversas, fiquei mais feliz do que antes, percebendo, enquanto ouvia o tambor distintivamente latino de Cataño dando o máximo de voltas em torno de melodia nenhuma, que era nesse momento que a música ambiente estava sendo feita.

Lindo livreto de Archivos de Radio Piedras com letras do disco e entrevistas, vendido no merch


Muitas pessoas ficaram insatisfeitas: as que achavam que estavam indo para um set com batidas mais rápidas, as que não conseguiram abstrair do barulho e queriam apreciar o show em silêncio absoluto (embora destes ninguém nunca tire o fato de ter visto Radio Piedras ao vivo), e provavelmente a própria banda. Quando Nico anunciou que tocaria algumas das mais antigas (tivemos a alegria, por exemplo, de ouvir No, do álbum Sirens), houve pedidos na plateia pelas músicas do projeto Against All Logic, cuja discografia foi toda escrita em inglês. Ocorre que nenhuma palavra em inglês foi proferida no set. Numa noite em que Nicolás Jaar leu um discurso no idioma do público, o público não se esforçou para falar o seu idioma. A verdade é que, por mais que lutemos para extrair algo de positivo no passado da música ambiente, o artista não merecia o tratamento de um bar de escuta para algo que encarou como (e que era) um show. Quem sabe num retorno futuro, em um show próprio, ele consiga encontrar aqui uma base de fãs maior. Fato é que este blog ainda tem muito trabalho a fazer.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

#9 - Kitaro: a versão musical dos romances de jornaleiro

Discos rejeitados lembram o "multiverso" das séries de livros Sabrina, Júlia e Bianca

Eu posso apostar que a cada feira de vinil que acontece nesta cidade se repete ao menos uma vez a seguinte cena: um garotão chega em casa, se sentindo todo "esperto" pelos garimpos. Ele começa a remover das sacolas um por um, começando pelos mais óbvios. Guardado no canto de sua mente, deixado para abrir por último, está a cereja do bolo: aquele LP do Kitaro que ele nem sabia que existia, e que de forma inexplicável conseguiu levar por 30 reais. Como pode o dono do estande ter sido burro a ponto de deixar essa preciosidade na caixa das maiores liquidações? Soberbo, ele se apressa para ostentar a história perante seus amigos, e para isso começa a coletar dados. "Vou mostrar quanto estaria valendo na internet". Abre o Google e os cinco primeiros resultados são discos do Kitaro custando 30 reais. Novos, ainda. Com uma pitada de sadismo, o sexto resultado se apresenta logo ali embaixo, custando 15. Mas como diz a juventude, "não posso interferir em um momento canônico". O azarado descobre que por ali passou o carimbo da gravadora Polydor, histórica financiadora dos excedentes de estoque de vinil, e que na década de 80 as prensagens nacionais de Kitaro saíram como água. Não só as prensagens, aliás: a própria discografia de Masanori Takahashi, apelidado desde a escola a partir do anime GeGeGe no Kitarō, é um pouco desfavorável a qualquer ideia de escassez que pudesse ajudar a aproximar suas obras de artigos de luxo. Por sorte, o presente blog despreza esse tratamento, e desde que no texto 1 defendemos a música como algo potencialmente utilitário me parece honroso manter a tradição de resistir à elitização da arte. Com mais de 100 discos entre projetos solo, colaborativos e trilhas sonoras, é fácil entender a razão de nosso colega ter visto na feira um disco inédito, com todo o aspecto de um achado, mas lamentavelmente o peso da descoberta se reduz um pouco. Vários álbuns, para além de tudo, ainda viveram a saga fundamentalmente japonesa de ter nome, título e capa alterados em edições alternativas. Mas, ao amigo, um consolo: se as suas asas de uma grande escavação no sentido mercadológico foram cortadas, o sentido da matéria, que é o que mais importa, indica que 30 reais são incompatíveis com a vasta riqueza contida nos LPs do artista japonês. 

A época new age foi culturalmente fértil de uma forma que não se via desde o Renascimento. Os movimentos se equiparam quando temos em mente a quase inédita confluência de saberes antes descentralizados: ciências ocultas, ufologia, diálogo entre doutrinas religiosas sem fronteiras, astrologia, medicina reiki, cura com cristais, raves, movimento hippie. Mas se, como movimento, ele teve seu auge na década de 70, o que se chama hoje, de modo reducionista, de música new age, intimamente ligada a um som eletrônico mais progressivo, só floresceu a partir dos anos 80. As primeiras músicas do "gênero" não eram orientais, ainda que bebessem tematicamente da influência asiática sobre o ocidente durante esse período de boom. Foi necessário que Kitaro ajudasse a popularizar a música new age no ocidente, tendo sido um de seus pioneiros, mas ele próprio não tendo simplesmente trazido sua bagagem técnica do oriente e aplicado aqui. Foi bem o contrário: aprendeu com Klaus Schulze, do Tangerine Dream, a usar os sintetizadores, quando o alemão produziu para o grupo de que Kitaro então participava, Far East Family Band. O que esse recém-adquirido repertório técnico encontrou em Kitaro, agora sim, foi um terreno fértil onde pudesse se mesclar com uma experiência de vida que já existia ali.


Minha tentativa mais verdadeira de descrever a música de Kitaro seria dizer que, por baixo da superfície repleta de adereços cósmicos, ela é "yearning" puro. Mas "anseio" não consegue traduzir isso exatamente, consegue? Quando analisamos seus discos, especialmente os de sua fase mais espiritual - qualquer um desses que você encontraria num sebo: Towards the West, Silk Road, Oasis, Ki, Astral Voyage - percebemos que em sua essência existe nitidamente uma busca. Arcos que criam melodias ascendentes e descendentes, notas prolongadas que parecem gemidos existenciais. Os deslumbrantes sintetizadores - análogicos, segundo o artista, para infundir maior quantidade de vida - se combinam com flautas e criam uma atmosfera luxuriosa, com sonoridades sibilantes siderais. Por mais introspectiva que sua música soe, a espacialidade dos discos projeta a atitude meditativa também em direção ao universo. Não só pela temática e identidade visual dos discos, mas pela forma mesma da instrumentação. A música de Kitaro flerta com ideias de infinito, e consegue nos transmitir lampejos desse conceito com arcos melódicos que parecem sempre em expansão, em expansão. E que, movimentando-se, buscam algo. 

"Os sintetizadores me ajudam a evocar um oceano, uma costa no inverno, uma praia no verão, uma cena inteira", diz Masanori. Tudo faz sentido quando se leva em conta que ele é xintoísta - um pedaço de verdade que o ocidente tentou replicar mas que se pode encontrar em versão autêntica em todo o estilo de vida do compositor. "É como um modo de viver. Não é exatamente uma religião, embora seja classificado como tal. (...) No xintoísmo acreditamos que os deuses vivem na natureza, nas árvores, nos oceanos e tudo mais. Eles são invisíveis, mas talvez se fecharmos os olhos e fizermos uma imagem, a gente consiga sentir algo. Esse é um dos presentes dos deuses, da natureza". Os sintetizadores são a busca de Kitaro por criar essas imagens.

*

Tanto pela presença nos sebos mais improváveis como pela imensa produtividade nos lançamentos, passando ainda por terem na apresentação física projetos estéticos não muito diferentes, a obra de Kitaro me remete aos preciosos romances de banca. Uma vez descoberta uma fórmula, o compositor japonês dedicou-se a replicá-la, não em termos da alma dos discos, que sinto que seguiu passando por um crivo artístico verdadeiro, mas certamente dos artifícios técnicos e da estrutura. Os títulos dos álbuns também tinham algo de genérico: "Silver Cloud", "An Ancient Journey", "Astral Voyage" e "Peace on Earth" tentam transmitir um vago senso de aventura. Os inovadores romances de banca faziam algo parecido, usando de artifícios formulaicos para criar a mais variada gama de narrativas dentro das linhas específicas de Sabrina, Júlia e Bianca. Note-se: os livros não eram escritos por uma mesma autora, e sequer as personagens se chamavam Sabrina, Júlia e Bianca. Isso num tempo em que "cinematic universe" ainda não era moda! Para contextualizar, vou parafrasear quase inteiramente o relato de José Antônio, dono do blog primo "Livros e Opinião".

"As protagonistas da série Sabrina eram mais atuais e o cenário mais moderno. As histórias mostravam conflitos do dia-a-dia gerados por mal-entendidos e ciúme, sempre coroados com um final feliz. (...) A série Bianca seguia as mesmas características apostando em histórias que seguiam a temática onde as protagonistas eram românticas e sonhadoras; a única diferença estava relacionada ao cenário, quase sempre antigo. Os relacionamentos amorosos dos personagens eram descritos de maneira bem sutil e poética. Já os romances do segmento Júlia mandavam ver. Os enredos eram picantes na maioria das vezes explorando romances proibidos. As personagens eram mulheres maduras, decididas e sexy.


"É importante frisar que mesmo sendo um pouco mais liberais do que Sabrina e Bianca, os enredos de Julia não fugiam do estilo recatado da série de livros de banca. Os trechos envolvendo cenas de sexo eram descritos e jamais chamavam os órgãos genitais pelo nome biológico, se referindo ao órgão feminino como a ― “feminilidade” ou ao “triângulo cheio de pelos”.

"As tramas eram muito variadas, como a empregada que apaixonava pelo patrão, a mulher pobre que amava secretamente o patrão, a viúva que desejava o amor de seu humilde empregado, etc.

"As autoras das tramas era o menos importava no esquema. Quer uma prova? Então lá vai. Será que você que foi leitora assídua das “Sabrinas”, “Julias’ e “Biancas” se recorda de nomes como Anne Hampson, Sara Craven, Margery Hilton, Violet Winspear e outras? Se você disser que conhece uma dessas escritoras; com certeza estará mentindo. Quando uma escritora era convidada a escrever um enredo para qualquer um dos três selos da Nova Cultural, ela tinha de seguir uma estrutura narrativa única e que pouco ou quase nada mudava. Uma verdadeira cartilha. Ah! Eram contratadas apenas escritoras desconhecidas da grande massa de leitor. Muitas delas sem nenhuma bibliografia na Net."

*

"Yes, many loved before us
I know that we are not new
In city and in forest
They smiled like me and you"
- Leonard Cohen, "Hey, That's No Way to Say Goodbye"

Uma coisa sobre o amor, pela qual já passei e acredito que seja parte do processo de formação de qualquer amor amadurecido, é o necessário deslocamento do particular para o universal. Um casal de pombinhos apaixonados percebe, de forma legítima: "Como é que isso aqui que estamos vivendo, que é tão único, pode compartilhar palavras em comum com vivências de outras pessoas? Como pode a linguagem ousar dizer que sabe explicar precisamente o que é isso aqui? Como ela pode sequer pensar que tem acesso a isso?". Tudo parece clichê. Entra-se então na fase de procurar vocativos, angariar peculiaridades, piadas internas, tentativas de singularizar e identificar ao máximo a experiência do casal. Mas passado esse afã, o que sobra é uma serenidade adquirida: pensando bem, a palavra "amor" serve bem para explicar isso. O vocativo básico deixa de incomodar, e o sentimento de humanidade-comum toma conta. Os fenomenólogos dirão que essa é a passagem do Eu para o Mundo. Kitaro representará isso em seus álbuns, que sempre deslocam o ouvinte de seu ponto inicial em direção a alguma jornada externa. Afinal, se somos um com o universo, não é necessário teimar por uma individuação das experiências. E os romances Sabrina, Júlia e Bianca farão o mesmo, em dois sentidos. O primeiro, na escolha editorial de manter narrativas simples e universais. Fazendo isso, exalta-se a dádiva do amor anônimo e cotidiano, combatendo exatamente o tal desejo de diferenciação. Os livros têm sucesso na bela tarefa de capturar, no que é comum a todos, a intensidade daquilo que se experimenta de modo particular. O segundo, na escolha de rotacionar as escritoras, sem que as histórias pertencessem a nenhuma delas. Cultivou-se um espírito de colaboração que fez Sabrina, Júlia e Bianca tomarem vida própria, fazendo parte de algo maior. Nisso me vejo obrigado a mandar um caloroso abraço ao amigo Rogério, que muitos anos atrás havia me dito que o que havia de mais interessante sendo produzido na literatura estava no Wattpad, e só depois de todo esse tempo fui entender. O tempo tem seus próprios caminhos.

Ouvir um LP do Kitaro pela primeira vez é único, isso é inegável. Quanto mais obscuro for o álbum e maior aspecto de garimpo tiver tido a compra, provavelmente mais místico será o ritual. Depois de passear por alguns discos a mais, deve começar a crescer um senso de repetição, de já ter escutado um instrumento ou uma construção antes. Essa foi uma escolha que Kitaro precisou fazer em nome do volume de publicações, e é um dilema artístico válido. Vale lembrar que, antes de tudo, a arte é um ofício, e a música ambiente tem como característica a abertura para uma experiência que não se esgota no processo de escuta. A oposição, portanto, a uma ideia de objeto artístico fechado em si, finalizado e bem acabado, que não interage com a escuta, respalda uma possível decisão de não restringir o acervo próprio a alguns poucos discos, padronizados mundialmente, recipientes de uma admiração sagrada. Quando, então, prestamos atenção à obra de Kitaro, vemos seu movimento de intencionalidade em direção ao mundo, que é na verdade uma forma de constatar que a separação nunca existiu. Dotados de uma sensação de pertencimento, nós e o garimpeiro de vinis frustrado percebemos que nem todo sentimento precisa ser único para ter valor.

terça-feira, 13 de maio de 2025

#7 - Sismografias de Vizinhanças Vol.I

Compilação reúne e potencializa inquietações subterrâneas

Foi vendo as cenas de abertura de Twin Peaks que eu primeiro me importei com a espessura das coisas. Um disco de serra tendo seus dentes de metal milimetricamente afiados. Os movimentos coordenados, pausados, do afiador e de um braço mecânico que precedem as descidas do primeiro sobre a lâmina, avançando sobre o material com velocidade uniforme, rasgando-o de forma terapêutica, quase suave, uma sensação concreta da materialidade do disco. Assimilamos de uma só vez, como que sentindo em nós mesmos, as propriedades físicas exatas dos dentes da serra: a resistência do material, o atrito que explica o ritmo lento e esforçado da descida do afiador. Mas que esse apaixonamento tenha ocorrido em específico por máquinas industriais e uma serraria foi totalmente obra da contingência, mérito do sequestro dos sentidos por Lynch e Badalamenti, que poderiam nos seduzir a amar qualquer banalidade que romantizassem naquela abertura. Por essa obsessão ter começado no contexto de Twin Peaks, a introdução da indústria no meu sistema de afetos se deu, historicamente, muito mais associada a alguma tranquilidade idealizada do que a algo necessariamente destrutivo. Como escapismo de um tempo em que o trabalho exige nossa devoção psíquica, demandando proatividade e premiando mais os funcionários quanto maiores forem seus índices de ansiedade, projetei talvez numa cidade pacata, dependente de uma pequena serraria, os ideais de uma comunidade em que tudo funciona em seu devido lugar. A serenidade do pássaro que contempla seus arredores, uma visão distanciada da fábrica de cujas chaminés a fumaça sai inabalável como se fosse uma lei da natureza, em seguida três planos consecutivos descrevendo a afiação das serras, e por fim a fisicalidade de um tronco, imponente e maciço. O senso de aterramento. Esses seis primeiros planos, todos, embebidos num tom sépia que estabelece a ambientação terrosa, a consciência das sensações físicas e de estar preso ao solo. Os planos dos discos de serra, no contato do afiador com a lâmina, apresentam as faíscas em cor dourada, que ainda se encaixa nos tons propostos mas domina completamente o restante, como o fogo que se destaca na lareira em uma noite fria, no interior de uma casa de paredes amadeiradas. São poucos os outros casos em que a arte consegue me trazer um senso de fisicalidade tão isento de intermédio, tão perto da experiência. Algumas esculturas de Michelangelo. As fotografias de Robert Smithson. O chiado que se ouve de forma mais proeminente em discos de vinis antigos. Os grãos que se formam na fotografia analógica. O álbum "An Imaginary Country", em que Tim Hecker sozinho criou as formações geológicas de um país, com toda a sua pressão atmosférica e densidade do ar. A música noise, de modo geral.



A teoria da informação faz uma distinção conceitual entre o sinal e o ruído. O sinal pode ser entendido como uma mensagem que um emissor quer passar a um receptor. O ruído, por outro lado, é toda interferência que prejudique a captação da mensagem pela parte receptora, ou informações transversais que não se relacionam com o conteúdo da mensagem principal. Desenvolveu-se uma ciência inteira, chamada processamento de sinais, com o objetivo de tornar eficiente o fenômeno de transmissão de um sinal elétrico: minimizar a perda informacional otimizando o sinal e reduzindo o ruído. É curioso que a música noise (ruído) tenha sido analisada por Aden Evens, em seu livro "Sound Ideas", por esse prisma conceitual: "é o ruído que alicerça o sinal, que serve como um meio, uma base, um plano de relevo contra o qual o sinal se destaca". Um segundo livro chamado "Reverberations", de Goddard, Halligan e Hegarty, comenta: "O uso da palavra 'relevo' sugere uma imagem geológica. O ruído é como a camada subjacente da qual o sinal, com seu conteúdo informacional, emerge em relevo, sob pressão de forças tectônicas. O sinal se relaciona com o ruído tal qual uma montanha emerge de um solo em constante deslocamento. A montanha é uma testemunha silenciosa da ação passada de forças emergentes da terra, e da certeza de que futuros deslocamentos tectônicos continuarão remodelando a paisagem. Como um pico, o sinal se destaca contra as forças generativas e regenerativas de sua própria formação tectônica". Essa é uma visão que, embora desalinhada com a teoria da informação em sua formulação estrita, permite uma interessante reelaboração do que é ruído: não um elemento que se soma ao sinal numa tríade que inclui o "nada", mas a perfeita antítese do sinal num modelo binário em que só ele e o ruído existem. A própria existência do sinal só é viabilizada, portanto, porque existe o ruído em primeiro lugar. A clássica e simples frase de John Peel, o primeiro apresentador de rádio na história da BBC Radio, ajuda a defender essa ideia: "Alguém estava tentando me dizer que CDs são melhores do que o vinil porque não têm ruído de superfície. Eu respondi: 'Escute, amigo, a vida tem ruído de superfície'".

Foi nesse contexto que me interessei pelo disco Sismografias de Vizinhanças, Vol. I, organizado por George Christian. Além de articular trabalhos independentes da cena brasileira de música experimental, o que vale por si só, o projeto pareceu compreender, talvez num plano pré-linguístico, a importância da atividade sísmica como causa e sintoma de uma entropia que infraestrutura uma realidade caótica, ruidosa e sempre em movimento: são essas inquietações subterrâneas que explicam o movimento constante das coisas aqui em cima, seus cismas, rupturas e erupções. Logo percebi que a missão do projeto de amplificar ruídos da música independente significava um acesso direto a essas camadas subterrâneas. 

Escreveu Proust: "Não se pode compreender a que ponto essa inquietação agitava e, por isso mesmo, havia enriquecido momentaneamente o espírito do sr. de Charlus. Assim, o amor provoca verdadeiras convulsões geológicas do pensamento. No do sr. Charlus, que ainda poucos dias antes se assemelhava a uma planície tão uniforme que, na maior distância, não se poderia perceber uma única ideia ao nível do solo, tinham-se bruscamente erguido, duras como pedras, um maciço de montanhas, mas de montanhas que fossem igualmente esculpidas, como se algum estatuário, em vez de transportar o mármore, o tivesse cinzelado no local e onde se retorciam, em grupos gigantes e titânicos, a Fúria, o Ciúme, a Curiosidade, a Inveja, o Ódio, o Sofrimento, o Orgulho, o Receio e o Amor".

É de criaturas do submundo que se ouve os lamentos e denúncias, pensei antes de ouvir Sismografias de Vizinhanças. Tal preconcepção foi confirmada na minha escuta. E, mais do que isso, duas boas surpresas contribuíram para minha apreciação pessoal: a presença representativa de músicas do "gênero" noise e a recorrência do mote industrial nas faixas ao longo do disco. Um primeiro apaixonamento meu por indícios de fisicalidade na arte que se deu por intermédio de David Lynch esteve obviamente sujeito a seus tiques sensoriais e sua obsessão pela fábrica, resultando numa relação com a materialidade das coisas que nunca está completamente dissociada do tema industrial. Que o noise tenha essencialmente uma missão política de revolução e uma estética de incorporar a decadência tornam essa aproximação com uma sociedade pós-industrial ainda mais natural, e o resultado é um disco que consegue transmitir a espessura e a densidade de suas músicas, que sonicamente incorpora os grãos de um filme analógico, que lembra a sensação de aterramento e experimenta com relevos e formações rochosas a partir de placas que se chocam. Por desígnio e por características imanentes, não deixa dúvida se tratar de um disco geológico. 

A pesquisadora em cinema Kim Knowles, em artigo publicado em 2016 no "Cinema Journal", identificou o fenômeno recente que chama de virada material: a tendência que vemos na teoria política e nos estudos culturais de um resgate do materialismo. Isso encontra lastro na realidade quando observamos a profusão de autores que tem ganhado popularidade advindos dessa escola, epitomizados na figura de Mark Fisher. Assim percebi que meu interesse pela textura não era nada mais que a minha virada material, inserido no contexto de um processo mais amplo. A autora explica, por meio dessa virada material, a recuperação que vem sendo feita dos processos artesanais de produção de filmes, com um notório destaque para o analógico. Isso fez nascer no cinema, por exemplo, o movimento de slow cinema, em que o tempo é incorporado à obra como um elemento físico. Alguns experimentam com processos bioquímicos para capturar a materialidade do tempo, como os filmes sem câmera, que envolvem o aterramento ou a submersão de um rolo de filme na água, ou de forma geral sua exposições a condições climáticas diversas. "A habilidade que o filme tem de capturar a influência do mundo material em seu corpo de celuloide pode ser entendida ao mesmo tempo como uma ética e uma estética da lentidão. Por um lado, o processo envolve um investimento temporal da parte do realizador que implica a arte de esperar; por outro, os filmes registram uma temporalidade geológica e ambiental profunda que apresenta uma alternativa às noções humanas de eficiência e instantaneidade embutidas numa sociedade predicada na velocidade. O diálogo que se dá entre o substrato material e o ambiente (solo, vida das plantas, água, ar) pode ser registrado somente por meio do tempo, conforme o decaimento bioquímico acontece em resultado do contato prolongado com os elementos. Esses processos fílmicos 'terrosos', então, nos pedem para voltar nossa atenção aos ritmos do mundo natural e para (re)considerar, pelo meio do celuloide, outras possíveis formas de ser". Observando fenômenos tipicamente leblônicos e ipanêmicos, fica fácil explicar a explosão da cerâmica e da carpintaria como os denominados "hobbies" não só por sua "estética da lentidão", mas porque essa estética está associada a trazer à vida uma necessária tangibilidade, que tem estado muito em falta. De fato, centrais para a temática da lentidão no cinema analógico são o investimento corporal e agência. A "fisicalidade laboriosa" da tecnologia analógica reage ao "mundo incorpóreo e inumano" proposto pelo digital. Jonathan Sterne já havia escrito sobre o que chamava de "metafísica da gravação", a ideia de que "mediação é algo que pode ser medido em termos de sua distância para a vida", se supusermos que uma gravação captura certa quantidade de vida e que, "conforme uma gravação atravessa um número de etapas tecnológicas cada vez maior, a quantidade de vida diminui, essencialmente movendo-a (e talvez o ouvinte) em direção à morte". O trunfo do noise - nitidamente um gênero intenso em digitalização - se dá, nesse contexto, no âmbito estético e no âmbito político. No político, por não se contradizer quando abraça uma estética digital: se isso está associado a uma ausência de vida, é porque cumpre a função de não nos deixar desviar os olhos para o que de mais extremo existe na nossa realidade material. Se o que existe é um cibercapitalismo em fase avançada de decaimento, é isso o que aparece nos lamentos ruidosos do submundo. No âmbito estético, o trunfo do noise é capturar os processos físicos como se fosse um filme atravessado por tais reações bioquímicas. A modernidade trouxe a ideia de objetos artísticos como coisas a serem preservadas e admiradas à distância, sem contato. Seu valor parece maior quanto menos "tocáveis" eles forem. Algumas insurgências foram feitas contra essas ideias, desde diversas instalações artísticas até projetos na música: Pierre Schaeffer e sua ideia de objet sonore e Iannis Xenakis, que incorporou influências de sua carreira na arquitetura em projetos musicais. O noise é mais um empreendimento que consegue traduzir sensações de matéria nas ondas sonoras, provando que vibrações musicais têm o direito de se reinvindicar como da ordem do tátil. 

A capa de Sismografias já indica que não estamos diante de um catado de faixas mas que, com uma identidade visual compartilhada entre as partes que compõem o mosaico, o projeto pretende ter alguma unidade. A primeira faixa, "Trem Fantasma da Vasconcelândia", de Löis Lancaster, cumpre com seriedade seu papel profetizado no título: nos recepciona a bordo do trem dentro do qual vivenciaremos a iminente jornada. A arquitetura lúdica deste trem e a paisagem que vemos do lado de fora pelas janelas, ele ainda parado, revelam um parque de diversões sem vida e que cai aos pedaços. Uma voz feminina perturbadora e estridente introduz os entulhos e destroços de concreto que compõem um cenário árido debaixo de letreiros de neon estourados e sem luz, placas penduradas por um fio, rostos de palhaço e bonecos de cera gigantes, sorridentes e bochechudos, em espaços liminares cuja extinta vida se justapõe com ironia à total devastação constatada no presente. Algo como um manifesto é esboçado: "quantos deram suas vidas pra que nada acontecesse?". Estão explicadas a decrepitude e o abandono do lugar que já foi palco de acontecimentos-de-vida. A segunda faixa, de 4zero4, nos coloca em movimento bem lentamente, mais servindo para ambientar a vista monótona, introduzindo um melancólico estado de suspensão. Toma-se consciência da ampla dimensão do local, que, com a ausência humana que o tornou deserto, reverbera sons no vazio, sem esperança de encontrar tão cedo um receptor. Em "Clases de piano", Animal Cracker apresenta um fundo cheio de ruídos em que sinais tentam persistentemente ser emitidos. O animado riff em primeiro plano explora com nostalgia algumas das áreas que já foram alegres, acompanhado ao fundo da faixa por brincalhonas bugigangas industriais, úteis no passado e agora parte do entulho que já pertence à solidão do local. Conforme o trem anda, "Falso Alarme" segue desenvolvendo as relações entre ruídos e sinais e apetrechos industriais esboçando alternância entre estados de vida e morte. Em "Ainda Hoje", de bruno nobru, uma pausa acústica que conseguiu temporariamente se libertar da opressão tecnológica que alcança até mesmo o cenário devastado. Faixa reflexiva e, no entanto, muito melancólica, talvez por sabermos da transitoriedade desse alívio, e certamente pela constatação finalmente assimilada do devir, fruto da comparação entre o antes e o agora. Em seguida Guilherme Darisbo continua a investigação acústica mas numa aparente consequência da descoberta anterior. A reflexão é menos nostálgica, e já se propõe um pouco mais à ação, começando a se dar conta de seus entornos e experimentar com objetos variados que se apresentam disponíveis. Potências e alternativas são esboçadas, ainda num plano teórico, sem a violência e o ímpeto de percussões e barulhos. Em "Quiromusicomancia", de Beto Jr., os debochados fantasmas do passado e um determinado senso de reação e sobrevivência no presente convivem. A decadência percebida não se impõe mais como sina: embora o ambiente seja ainda arrasador, aprende-se não necessariamente a aceitar viver aqui, mas a aceitar aqui como um ponto de partida, como plataforma de alguma agência possível. "Sirena Sirene", de Heitor Dantas, retorna com um pouco mais de desolação. A faixa se entrega à letargia e volta a ver o aparato tecnológico não como uma ferramenta de escape, mas como elemento que ambienta e caracteriza essa distopia. Reações esboçadas são constantemente interrompidas na medida em que máquinas periodicamente rodam e voltam a falhar. Um processo de erosão: a persistência de eventos esparsos, destrutivos, que só fazem avançar a degradação. Parecemos estar sem saída.




Diante de tamanha desorientação, como podemos encontrar uma geografia habitável ou, pelo menos, alguma pista de um caminho de fuga? Tudo parece tão desoladoramente perdido que a esperança se tornou um artigo de luxo. Em "Onde Aterrar?", Bruno Latour (um dos maiores responsáveis pela "virada material" que Kim Knowles descreveu) se dedicou a analisar a jornada da civilização em alta velocidade para o colapso climático, e o nome do livro parece ter o mesmo desejo de concretude que temos ao escutar o disco. Sua proposta para conseguirmos aterrar passa por escapar da dicotomia Localismo/Globalismo, que nos impede de nos mobilizar de forma coesa para a resolução dos problemas. Para isso criou um novo conceito, que é ao mesmo tempo um ator-político: o "Terrestre", que reage às ações humanas e, justamente por ter essa agência, precisaria ser levado em conta em nossas decisões coletivas. O Terrestre é uma postura que nasce do reconhecimento da nossa interdependência com outros seres vivos e com o planeta. Somente a partir deste conceito poderíamos encontrar um Solo comum onde aterrar. "Do solo, o Terrestre herda a materialidade, a heterogeneidade, a espessura, a poeira, o húmus, a sucessão de camadas, os estratos, a surpreendente complexidade, a necessidade de acompanhamento diligente e de um cuidado minucioso". 

Esse é o mesmo Bruno Latour que, muitos anos antes, havia publicado o ensaio "Can we get our materialism back, please?", em que mostrou também se preocupar com a robustez das coisas. Usou como ponto de partida o exemplo da vista explodida, muito usada no desenho técnico para promover uma visualização didática dos componentes de uma máquina, aquele diagrama que representa as partes bem afastadas uma da outra, como se entre elas existisse um vazio que, na realidade, não existe, mas facilita entendermos parte a parte sua composição. Ele argumenta que um desenho ser idealizado por um engenheiro com todas as suas partes separadas e, depois, ser transformado numa única entidade funcional, que tenha todas essas partes integradas e que sobreviva por conta própria resistindo ao passar do tempo e à deterioração, são duas formas de existência totalmente distintas. Ele questiona: se isso parece óbvio, por que com tanta frequência agimos como se a matéria em si fosse feita de partes que se comportam como aquelas dos desenhos técnicos, vivendo no reino atemporal e imutável da geometria, e não como uma unidade na realidade? Para Latour, isso se explica porque nossa visão de materialismo não era na verdade muito material, mas antes uma visão ainda idealizada. A descrição de algo pela forma geometrizada, como na vista explodida, é a visão idealista, que produz objetos, cuja descrição é sempre magra, e que tem uma definição ideal da matéria. Essa também é, como escreveu Ken Alder, a forma como antropólogos usam descrições etnográficas para reduzir ações coletivas a uma matriz simplificada de comportamento que as expliquem, apenas a título de exemplo. Uma segunda maneira, no entanto, que é mais desejável, dá origem de fato às coisas e captura a sua "coisitude". Essa é uma descrição robusta, que tem uma definição material da matéria. Ele mesmo alerta que não se trata de uma divisão entre representações geométricas sendo sempre abstratas, frias ou mortas, de um lado, e representações pelo aço, bronze ou madeira sendo sempre concretas, acolhedoras e vivas, por outro, mas que é um aviso sobre a necessidade de mantermos a consciência de que as partes, na realidade, seguem sempre seus próprios caminhos.

A busca por coisas robustas me parece especialmente mais importante quando vivemos no que chamo de "república Fábio Brazza", o rapper de condomínio querido pelas avós que assistem Leandro Karnal e escutam Michael Bublé, que dizem que "esse Kaká tinha que ser exemplo para mais jogadores" ou "vejam como esse Caio Coppolla é educado, como é erudito e argumenta bem". O hip hop certinho, gente boa, bem comportado. Curiosamente ele também já teve sua virada geológica, e sem muita profundidade nos deu a seguinte letra: "E o que era Pangeia hoje virou pandemônio/ Há um muro de Berlim em cada esquina". Quando digo que somos a república Fábio Brazza, falo de certa relação desenvolvida com a colonização, bem como da forma de tratar o nosso talento (ou commodities, ou recursos naturais...). Fábio Brazza é o herói dos garotos prodígio, que frequentemente se confunde com o messianismo, como no famoso modus operandi da carteirada bolsonarista que é fundamentalmente brasileiro: "Trouxe aqui esse menino, o moleque entende muito de computação, de olimpíadas de matemática do colégio. Hoje vai comprovar o problema das urnas eletrônicas". O eficaz arquétipo do garoto "talentoso" (o gênio sem certificações) se alinha ao queridismo das avós e sempre encontra terreno fértil para recepção. Embora a carteirada seja mais caracteristicamente brasileira, o culto ao virtuosismo, em si, não é exclusivo, e me lembro distintamente quando, quase 10 anos atrás, vi algum vídeo recomendado pelo Youtube sobre o mais novo garoto prodígio da música, o nerd que estudou música em grandes universidades ("fez Harvard") e se divertia aplicando "vários avanços da teoria musical" com aparente facilidade em sua arte. Suas participações até então se restringiam a se exibir em programas de auditório tal qual uma atração de circo, mas guardei o nome - "Jacob Collier" - tamanho o trauma. Só por esses dias, muitos anos depois, lembrei espontaneamente do nome e uma curiosidade mórbida me levou a pesquisar seu paradeiro. Obviamente sua produtização lhe concedeu uma carreira de sucesso na Indústria, e ele parece ainda estar por aí: agora sim, com algum corpo "artístico", fui escutar e não é surpresa que tenha achado ruim. O problema dessa cultura do virtuosismo e da exibição em "show de talentos", em "The Voice", que herdamos dos Estados Unidos, é que o grande atributo especial é o sujeito ser "bom" (veja que interessante isso que ele faz, veja como você esperava que ele fosse fazer uma coisa e ele foi lá e fez outra). Jacob Collier parece hoje ter investido num intenso "branding" que o vende - acho que não percebeu - como se fosse na verdade um apresentador do Art Attack, um cabelo curto e arrepiado com roupas coloridas para insinuar que é "arrojado", criativo e "doidinho". A dinâmica de circo continua, em que se apresenta à plateia não como um artista em conexão com seu público, mas como um mágico que vai deixar todos "boquiabertos" (e fazer o Simon Cowell aparecer em um close com os queixos caídos e um sorriso perplexo). Mas naquela coisa tecnicista não existe mágica, somente aplicações e aplicações de fórmula e de teoria musical. Fábio Brazza foi a maior sensação em sua época, e grande parte do apelo vinha dessa mesma origem, a de "Como foi sagaz essa rima que ele fez! O cara é fera". Só quando introduzimos em cena um Outro é que o fenômeno volta a ser particularmente brasileiro: a figura do colonizador, ou o "Simon Cowell", que para nós é mais pesado do que para Jacob Collier. É sob o olhar deste Outro que validamos a existência dos nossos talentos, numa configuração evidentemente vira-lata, o que não é novidade nenhuma. E então nos colocamos perpetuamente na posição de república que está no palco dentro de uns holofotes, objeto de riso da plateia, tentando impressionar e fazer virar cadeiras. Daí surgem os rappers de cursinho, de aulão pré-vestibular, que escrevem letras que poderiam levar ao especial de fim de ano da Globo, seguidos por um "We are the world". Um reformismo, música que veio do próprio sistema, a avó que prefere que o neto tenha uma revolta estéril e grite com ela usando rimas "sagazes" do que enfrente os perigos da rua. Qual seria a antítese de um artista desses? Uma música suja, geológica, de detritos e sedimentos. E se até aqui eu disse muito sobre as "sismografias", falo agora sobre as "vizinhanças". O disco analisado abraça o projeto de ser uma antítese de Fábio Brazza, não por cultivar uma falta de talento, que por óbvio está muito presente, mas pela reorganização estética desse insumo. Por colocá-lo a serviço de algo com valor político, que tenha alguma substância, que seja robusto. Ao fazer uma varredura das vizinhanças, estão em nosso redor as respostas que nos levarão para uma localização melhor.  

De novo Proust: "Todas essas lembranças reunidas umas às outras não formavam mais que uma massa, mas nem por isso eu deixava de perceber entre elas - entre as mais velhas e as mais novas, surgidas de um perfume, e depois as que eram somente lembranças de outra pessoa, que as passara a mim - senão fissuras, verdadeiras fendas, pelo menos essas nervuras, essas misturas de cores que, em certas rochas e certos mármores, revelam diferenças de origem, de idade e de "formação". Proust apresenta agora um novo elemento a ser associado à concretude das coisas: a memória. Se a memória está amarrada às coisas materiais (não só em ideia, em nos lembrar das coisas, mas se ela está nas coisas), ela também tem espessura. Bjørnar Olsen faz uma associação parecida em ensaio publicado no livro "How Matter Matters", em que destaca não só a importância da memória, mas chega a descrever em maiores detalhes como ela, indiretamente, se materializa, tomando forma concreta e se solidificando em nossos arredores: "Ao longo da história humana, essa reafirmação da estabilidade como o estado normal das coisas pode dificilmente ser exagerada. (...) A solidez e persistência são propriedades de ferramentas, paredes, cômodos, casas, ruas, cidades, montanhas e tudo o mais que fazem diferença vital na vida humana. (...) Essa confiada durabilidade também permite um outro efeito intimamente relacionado: o acúmulo ou sedimentação do passado. Esse acúmulo em si autoriza processos e desfechos que, pelo menos até certo ponto, são imprevisíveis e envolvidos por trajetórias materiais que criam suas próprias afirmações de significação de como o passado é concebido e reconstituído". Poderíamos ficar preocupados com a implicação política desse pensamento: estamos elogiando então a imutabilidade? Mas o trecho seguinte nos tranquiliza: "Cortar uma árvore, afiar uma pedra até a perfeição, construir uma rodovia e dirigir um carro, tudo isso contribui para a impressão de um 'mundo de processos' que está sempre em transformação. Também contribuem para isso as forças e ritmos da natureza, que lentamente ou de forma mais abrupta estão mudando a fisionomia da paisagem e as condições para a vida humana. As próprias coisas mudam, envelhecem e murcham, como o mundo material também está sujeito aos processos de ruína. Portanto, além da solidez do mundo material, há uma multidão de mudanças dentro dessa massa operando em diferentes escalas e diferentes ritmos. Não há contradição entre essa noção de um 'mundo de processos' e as noções de estabilidade, permanência e 'estar-ali'". Em outras palavras, buscar conforto na matéria não implica a falta de movimento. Podemos procurar a solidez da passagem do tempo sedimentada, materializada nos diferentes meios que nos rodeiam, sejam eles musicais ou de qualquer outro tipo, e a partir disso cultivar uma relação frutífera com a memória. Olhar para trás não significa não andar para a frente e, na música, podemos encontrar uma espessura sensorial sem jamais abraçar a inação. Nos movimentos tectônicos da vizinhança, aqui de perto, encontraremos a arte que, por sua força vital própria e pela nossa busca íntima na memória, nos permitirá, na jornada em que nos encontrávamos pelo parque de diversões mal assombrado, um ponto de virada para superar o momento de desolação e desespero que a faixa "Sirena Sirene" introduziu. 


Robert Smithson, 1969 
Collection SFMOMA, © Estate of Robert Smithson / Licensed by VAGA at ARS, New York


A reviravolta começa na faixa "Fx 34", de Luvebox FX, em que uma guitarra desejante parece explorar imaginativamente outras paisagens, imaginar novas geografias e rememorar geografias antigas, embora a prisão às condições materiais do lugar atual ainda se faça dominar. É uma das faixas mais espessas, que melhor faz sentir a consistência rochosa que permeia o álbum. O cenário piora quando, na música de Isabel Nogueira e Luciano Zanatta, as câmaras magmáticas se tornam inferno. Vozes fantasmagóricas agonizam e dão uma amostra mais concreta de como são os tais lamentos do submundo, e não nos assustamos, mas antes trocamos com essas vozes impressões e estratégias que flutuam no tempo e espaço: um intercâmbio de experiências com (outras) almas torturadas na tentativa de escape para uma geografia melhor. Uma reflexão profunda que pode nos servir de combustível e nos dar discernimento para uma escolha de ferramentas. Em "Ruído Intravenoso", de Maximiliano Chami, uma rota de fuga: inicia-se a ação. A percussão forte e o ritmo marcado da faixa indicam um relevo acidentado e revelam que a paisagem começa a sofrer modificações em função dos nossos movimentos. Avalanches, deslizamentos de terra, pedras quebrando e rolando e placas tectônicas colidindo. Trouxemos as perturbações da faixa anterior do inferno para a superfície e vemos que a atividade sísmica origina formações montanhosas maciças e espessas. São as convulsões geológicas do pensamento a que se referiu Proust. Recursos e pessoas são mobilizadas para a missão. Fragmentos de falas e tentativas de comunicação, em sinal e em ruído, mostram que essa faixa concentra o clímax confrontacional do projeto. Após a ação, um reagrupamento humano em que tudo é burburinho: missões de resgate, barulhos, um pós-catástrofe. Poeira, helicópteros, walkie-talkies e jalecos. Algo na realidade se alterou de modo permanente. Ainda atordoados e tentando nos adaptar à nova organização, Flávia Goa & Dibuk confirmam que o feito empreendido se tratou de uma fuga. Com orgulho olhamos para trás e percebemos a grandeza dessas modificações, enquanto ainda nos reacomodamos após o choque. Sobrou a devastação, mas o ar agora é diferente. Em "Fornicatrices Nocturnae", de André de Castro & Leandro de Los Santos, a saída do parque fantasma se consolida com a distorção e desintegração completa do local. O deboche anterior das imagens de palhaços que riam de nosso destino determinista se volta contra eles até que todo o local se derreta sobre si mesmo e os bonecos se tornem somente cera. Agora que somos criaturas já de um outro tipo, que não sabemos qual, esboçamos uma celebração em nossa nova e estranha linguagem, transposta para a música por um saxofone caótico. O projeto se encerra com "Enigmas e Talismãs", de Solavanco da Primavera, uma sentença de morte para a terra opressora que acabamos de abandonar. Assim como na primeira faixa uma voz humana nos recebeu, dessa vez somos levados ao portal de saída, enquanto uma leitura de Universo em Desencanto dá sentido ao que foi vivido: "A alegria será deslumbrante, a emoção e a satisfação serão enormes. Isto é um insignificante comentário da vida e do porquê da vida; do que é a vida atual e do que será a vida futura". Que possamos confiar sempre na nossa ação e nas perturbações tectônicas para relegar a se corroerem em sua própria ruína os males e sentenças de morte da vida atual, e para sabermos onde construir a vida futura. 

" (...) That is why, I suppose,
    The best and worst never stayed here long but sought
Immoderate soils where the beauty was not so external,
    The light less public and the meaning of life
Something more than a mad camp. 'Come!' cried the granite wastes,
    "How evasive is your humour, how accidental
Your kindest kiss, how permanent is death." (Saints-to-be
    Slipped away sighing.) "Come!" purred the clays and gravels,
"On our plains there is room for armies to drill; rivers
    Wait to be tamed and slaves to construct you a tomb
In the grand manner: soft as the earth is mankind and both
    Need to be altered." (Intendant Caesars rose and
Left, slamming the door.) But the really reckless were fetched
    By an older colder voice, the oceanic whisper:
"I am the solitude that asks and promises nothing;
    That is how I shall set you free. There is no love;
There are only the various envies, all of them sad."

    They were right, my dear, all those voices were right
And still are; this land is not the sweet home that it looks,
    Nor its peace the historical calm of a site
Where something was settled once and for all: A backward
    And dilapidated province, connected
To the big busy world by a tunnel, with a certain
    Seedy appeal, is that all it is now? Not quite:
It has a worldly duty which in spite of itself
    It does not neglect, but calls into question
All the Great Powers assume; it disturbs our rights. The poet,
    Admired for his earnest habit of calling
The sun the sun, his mind Puzzle, is made uneasy
    By these marble statues which so obviously doubt
His antimythological myth; and these gamins,
    Pursuing the scientist down the tiled colonnade
With such lively offers, rebuke his concern for Nature's
    Remotest aspects: I, too, am reproached, for what
And how much you know. Not to lose time, not to get caught,
    Not to be left behind, not, please! to resemble
The beasts who repeat themselves, or a thing like water
    Or stone whose conduct can be predicted, these
Are our Common Prayer, whose greatest comfort is music
    Which can be made anywhere, is invisible,
And does not smell. In so far as we have to look forward
    To death as a fact, no doubt we are right: But if
Sins can be forgiven, if bodies rise from the dead,
    These modifications of matter into
Innocent athletes and gesticulating fountains,
    Made solely for pleasure, make a further point:
The blessed will not care what angle they are regarded from,
    Having nothing to hide. Dear, I know nothing of
Either, but when I try to imagine a faultless love
    Or the life to come, what I hear is the murmur
Of underground streams, what I see is a limestone landscape."

- W. H. Auden, "In Praise of Limestone"