Cuidados hospitalares encontram dream pop na discreta obra da rede de medicina diagnóstica
Brian Eno escreveu: "a música ambiente precisa acomodar diversos níveis de atenção na escuta sem forçar um em particular; ela deve ser tão ignorável quanto é interessante".
Os sons de fundo na linha telefônica do laboratório Sérgio Franco não se apresentam da forma mais convidativa como música a ser "propriamente" apreciada. Esse impulso inicial deriva de uma tradição mais conservadora de ver a forma artística - aquela em que o meio de apresentação é o que define uma música como tal. Surge aí uma série de expectativas que circundam uma "experiência" de apreciação: tempo e lugar cuidadosamente separados para a uma escuta atenta e exclusiva; dinâmica de uma certa subserviência em relação à obra, que pretensamente tem algo de divina. Em resumo, uma espécie de idealização. E o palco que recebe a música da linha telefônica do Sérgio Franco não é um palco que se costuma frequentar esperando uma performance musical, o que torna difícil a vida de um ouvinte que, em condições específicas, se veja desconcertado diante de uma obra que passou a perceber com novos olhos.
Não importa o que o levou a esse estado mental em particular - se foi induzido por alguém, se veio de uma sugestão dos sentidos que partiu da própria música de fundo, ou de uma disposição prévia a já esperar desses sons alguma experiência "artística" - caso dos leitores do blog Música Ambiente RJ. Não se trata de apreciar "profundamente", nem mesmo de trazer essa admiração ao nível da consciência. Até porque defender tal único modo de se relacionar com a obra só serviria como aliado dessa visão de música que por tanto tempo foi aprisionante.
Esse olhar liberto, apesar de já estar aí por décadas, ainda hoje é subversivo, porque tem sido muito comum uma ideologia marqueteira, dessas autodeclaradas anticapitalistas (mas que em sua essência são capitalistas profundamente), que se opõem, de um modo muito genérico, a um tratamento "utilitário" da arte. Esse conceito foi lavado na máquina até perder completamente sua coloração e seu significado. A visão de que uma música não pode ser útil, não pode ser usada para trabalhar, não pode servir para preencher lacunas, não pode ser uma companhia durante o tempo de espera de uma ligação telefônica com fins comerciais, bebe dessas fontes reacionárias. Basta notar a quantidade de imperativos negativos na frase anterior. E nenhuma dessas proibições que mencionei são exagero meu: todas já fazem parte do senso comum, em maior ou menor grau, a ponto de não produzir estranhamento quando trazidos à tona. Mas essa retórica da proibição, esses imperativos que se colocam e cuja base é tão fraca que já nem se sabe a origem, tudo colabora para um eco de vozes que se reproduzem e se propagam de modo acrítico.
Sobre a origem, na verdade, conseguimos ao menos intuir algo. Para isso, é preciso buscar outros fenômenos que, por genealogia, parecem ter vindo do mesmo lugar. O mais importante deles é a recém popularizada "prosa publicitária" - livros que compõem uma literatura "sensível", com construções poéticas - ritmo, temas e de forma mais geral a própria Voz dessa prosa - claramente identificáveis, mimetizáveis a partir de um senso específico de afetação presente nessa escrita. E que avançam de forma absolutamente predatória sobre o campo da digna prosa poética e até da própria poesia. Se essa voz pudesse emitir sua opinião a respeito da música do Sérgio Franco, certamente escreveria: "a musica jamais pode ser instrumentalizada! ela é um abrir-se aos dispositivos do sensível!". Já se conseguiria, hoje, vender em massa romances ditos sensíveis produzidos inteiramente a partir de algoritmos, e da mesma forma se pode escrever uma crítica que seja, em sua aparência, muito sóbria e contemporânea, reprovando o tal uso utilitário da música, como frequentemente é o caso da música ambiente. Mas, ainda que em sua aparência essa crítica advogasse por um lado humano e libertador, no fundo o escrito não passaria de um serviçal das forças da proibição, um dentre incontáveis oompa-loompas contemporâneos do superego, e desprovido de qualquer substância.
Então a música da linha telefônica do Sérgio Franco pode, sim, ser analisada "por si só", com os típicos cuidados com que se olha para a obra nesse tipo mais tradicional de análise, mas também não é necessário - e é radicalmente equivocado - descartar a avaliação da obra a partir de seus aspectos utilitários. Se a música em questão tem, entre suas qualidades, a de cumprir o papel de preencher um espaço, reduzir a solidão de um iminente utilizador dos serviços de um laboratório de imagem, tanto melhor. Que parte dos elementos levados em conta ao se avaliar a música sejam esses, então. Nesse quesito, é impossível imputar ao fundo musical do laboratório Sérgio Franco qualquer demérito. No aspecto da utilidade a música cumpre sua missão com enorme honra, evitando com eficácia o tédio e, acima de tudo, a solidão do ouvinte. No mundo de hoje, numa sociedade que, para a enorme maioria das pessoas, foi moldada para a infelicidade, alienação afetiva e sofrimentos vindos como flechas de todos os cantos, o cuidado, o carinho de uma música que foi colocada de forma intencional, escandalosamente humana, para fazer companhia a almas surradas e cansadas, é um gesto de afeto dos mais maravilhosos - e, honestamente, inesquecíveis - que se poderia pensar. Não importa que o contexto envolva uma relação comercial que a sucede e uma voz robótica que a antecede - if anything, esses elementos só colaboram para realçar a humanidade da música de fundo, via contraste. Eu me pergunto quantos clientes do laboratório Sérgio Franco têm o mesmo sentimento, quando ouvem a música, que eu tenho: o de gratidão ao funcionário, empreendedor em seu ramo, cuidador por vocação, pensador por natureza, que teve a ideia e a implementou nas linhas telefônicas da companhia.
Um fator fundamental, que só faz reforçar as impressões do parágrafo anterior, e que, por pertencer ao contexto da obra, por fazer parte do universo particular que ela inaugurou, não pode de maneira alguma ser ignorado, é que se trate de uma empresa do setor de saúde. O cuidado já seria empático o suficiente dada a configuração socioafetiva mais conjuntural que mencionei. Mas o senso de acolhimento - inevitavelmente atrelado a uma maior necessidade dele - é ainda aumentado quando se pensa nas ansiedades que vêm com a incerteza de um futuro exame médico. Fosse uma operadora de telefonia, fosse o programa de perguntas na TV aberta Top Game (aquele que nos fazia esperar na linha para sempre e nunca entrar no ar), nem de perto o ato de cuidado assumiria igual delicadeza. A música do Sérgio Franco responde a uma necessidade urgente - uma resposta que desfila pelos limites do existencial.
Musicalmente, a trilha que acompanha a espera por um dos atendentes do Sérgio Franco revela uma estrutura em looping: repete, até o instante do atendimento, um trecho de cerca de um minuto e trinta segundos de duração. Não é do meu mais obcecado interesse tentar demarcar a que unidade estamos nos referindo, em termos de apresentação musical. Se é álbum, se é faixa. A presente obra é o que é, e, se fizéssemos realmente questão de levar em consideração o seu invólucro, isso penderia muito mais para uma qualidade do que um defeito: sendo uma obra musical de duração variável - que depende do tempo de espera que cada cliente vai atravessar - ela é completamente inovadora em sua apresentação. Cada ouvinte terá sua própria experiência com a obra - o que já sabemos ser uma verdade inescapável sobre a relação individual com qualquer peça artística, é claro. Mas com tal inovação formal a criação do laboratório Sérgio Franco elegantemente acena para esse aspecto da música e demarca seu posicionamento teórico: não é uma obra alheia aos debates que tomaram as últimas décadas dos estudos culturais.
No fundo, constante ao longo da faixa, um sintetizador etéreo. É o primeiro, dentre os elementos formadores da ambientação, que remete ao dream pop. O segundo elemento é o timbre delicado, que não chega a formar palavras inteligíveis, da vocalista anônima que empresa sua voz à obra. Procurada pela redação do Música Ambiente RJ, a equipe representante do laboratório Sérgio Franco não soube responder quem é a autora da cantoria, tampouco a quem se devem os créditos pela composição.
O elemento, contudo, que detém a maior parte do mérito em aproximar a ambiência da obra ao conjunto de signos que formam o universo do que se entende por dream pop é um que se alastra por todos os instrumentos, mesmo os que não aproximam a música particularmente dessa ambiência (o ruído metálico intermitente, o piano que entra em cena mais tarde, a estalada percussão e os sopros). Mesmo eles são empurrados na direção das particularidades do dream pop por efeito deste fator onipresente e homogêneo: um senso de distância. Senso físico mesmo, estimulado por um competente controle dos efeitos sonoros associados a cada instrumento. Todos os componentes da paisagem sonora, sem exceção, são amortecidos e reverberados a partir de uma aparente distância do ouvinte. E, depois de tudo isso, ainda se introduz o elemento final, que é uma degeneração da qualidade sonora. Uma estética lo-fi, em termos mais simples. Não é fácil para um ouvido mais distraído, e nesse âmbito a trilha do laboratório Sérgio Franco perde um pouco o seu foco, enquanto música do gênero ambiente, em possibilitar uma escuta desatenta. Mas tudo isso por um bom motivo, e que coloca a obra de volta em perfeito alinhamento com seu propósito utilitário: o de não permitir que o ouvinte relaxe completamente a ponto de se esquecer que está na espera da linha telefônica do laboratório. Mantendo a experiência de escuta em terreno relativamente desagradável, evita-se um ocorrido trágico: o risco de que o ouvinte esteja distraído no momento que um funcionário atender, e com isso atrasar os trâmites de agendamento dos exames médicos devidos. Afinal, é a saúde do paciente que está em jogo.
Nota da redação: Talvez por ser o primeiro escrito do blog, vejo com naturalidade que o texto tenha tido um viés mais digressivo, até introdutório, ou aspirado a uma análise um pouco mais geral, e menos detida na obra em si, do que seria de se esperar. Também vejo com naturalidade um paradoxo que surge com a mera existência desse blog. Desenhei no texto uma divisão entre ouvir atentamente e ouvir "subliminarmente" obras musicais, em especial as do gênero ambiente. Defendi que essa última forma apareça com maior frequência. O "problema" é que, para cada análise publicada aqui - análise de uma obra em particular -, eu faço uma adição ao grupo das escutas atentas. Isto é: me deter sobre uma obra unitária, e dedicar uma postagem a ela, é não praticar aquilo que melhor reflete a minha visão sobre o consumo de música. Mas aqui me permito apontar uma sutileza do texto: proponho uma aceitação de todas as formas de escuta, não a imposição da tirania de uma delas. Como espero já ter deixado claro, considero fora de época todos os imperativos. Ao lançar luz sobre algumas obras individuais, tento atrair a atenção para as demais músicas do gênero - talvez até, num cenário otimista, contribuindo para o aumento de sua popularidade. Então me parece que, de um jeito inusitado, criar uma escrita atenta pode ter alguma serventia para a escuta distraída. Isso me exime, acho, de boicotar minha própria visão. Tão importantes quanto os textos que venham a ser publicados aqui, ou até mais importantes, serão as músicas não comentadas, as trilhas que servem de fundo para a escrita desse material, e que podem não ser documentadas, as faixas que estiverem tocando em momentos de ócio e testemunhem alguma reflexão que venha parar aqui, ou o que estiver nos fones de ouvido dos leitores do Música Ambiente RJ, seja enquanto estiverem lendo o blog, seja em situações diversas: em nossos trajetos e deslocamentos, em nossos estudos e trabalhos, em nossas atividades domésticas. No que compõe a nossa vida.
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