sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

#3 - Mother Earth's Plantasia não necessariamente faz plantas crescerem... e tudo bem

O covarde boicote ao ocultismo botânico

A avenida Melrose de 1976, em Los Angeles, era o único tempo-lugar em que se podia ter contato com o álbum Plantasia. Com exceção, na verdade, das lojas de departamento Sears, que presentearam com ele quem fizesse a compra de algum colchão da marca Simmons. Mas a ideia original foi a da Mother Earth Plant Boutique, discretamente localizada na tal avenida. Não é nem que se trate de uma ideia, como se a escolha de vender o disco junto de seus produtos fosse acessória. O álbum foi meticulosamente esculpido para a boutique: o compositor Mort Garson planejou que a Mother Earth fosse ao mesmo tempo a razão de existência e o único canal de distribuição da obra. A loja concedia o disco a quem comprasse uma planta e, além da simpática capa que retrata pais de planta sorrindo enquanto seguram sua respectiva, e que tem os dizeres "warm earth music for plants... and the people who love them", o LP era acompanhado por um encarte que detalhadamente ensinava aos leitores os cuidados que deviam ter com suas mudas, com extensas instruções variando em função de qual das inúmeras espécies possíveis de planta se tratava.

Essa história de fundo sobre um álbum obscuro disponível em um único e pequeno lugar, com distribuição restrita e, por tudo isso, fadado ao mais inevitável dos esquecimentos, poderia fazer parecer que se trata de uma obra sem muita qualidade musical - ou no mínimo, pelo contexto de ter sido feito sob medida para uma boutique, que seu criador não seria um nativo do mundo da música. É essa a verdadeira face surpreendente da história: Mort Garson era alguém que sabia exatamente o que fazia, sendo já muito experimentado no campo musical e com obras anteriores, todas eletrônicas, fascinantes e repletas de inovação. Sim, Garson é um músico histórico, tendo sido um dos pioneiros no uso dos sintetizadores Moog, e o álbum Plantasia é a culminação de todo o seu talento, e sua obra mais relevante na história da música. 

Claudia Roquette-Pinto tem um poema, chamado "Brácteas papiráceas de buganvília", em que diz, descrevendo a espécie:

"(...)
Pode ser frustrante,
já que é muito relutante
em produzir flores
em situações que ofereçam
luz limitada
No entanto,
pode ser cultivada com sucesso
numa estufa
ou sacada."

A relativa popularidade que Plantasia alcançou recentemente se deve muito mais ao contexto que envolve o álbum do que à música em si. Isso porque, depois que o acúmulo de poeira e tempo em estantes abandonadas da Mother Earth Plant Boutique (que não existe mais) fez o seu efeito, foi necessária uma ressurreição do disco para que ele fosse notado. Notado como estamos falando dele aqui, como se fala dele em milhares de cantos da internet, e como ele finalmente tem conseguido ser visto. E a música, embora tivesse qualidade própria suficiente para despertar o interesse de muitos - em especial os mais interessados na evolução da música ambiente e eletrônica - não geraria, por si só, a aura que se formou em torno do álbum, tanto por sua biografia como (principalmente) pelos boatos que o circundam, e que hoje concedem a ele um consolidado status de folclórico. O boato principal é, basicamente, que o álbum faz plantas crescerem. Isso não é invenção de espaços recônditos da internet: o próprio Mort Garson é o responsável por isso. Ele era obcecado pelas artes do oculto, tendo explorado temas místicos, de exploração espacial, de figuras do imaginário religioso e satanista, de OVNIs e extraterrestres, e de tarô, cabala e projeção astral em seus outros álbuns. E Plantasia tinha a clara função de música para ser ouvida e apreciada por plantas, colaborando com seu crescimento. 

Livro que influenciou Plantasia, "The Secret Life of Plants" foi publicado em 1973 pela editora Harper & Row. Seus autores compilaram uma série de avanços que vinham sendo feitos nos estudos botânicos, por autores que estavam às margens da excludente comunidade científica da época, e lhes deu voz. Ali foram introduzidas ao grande público as ideias de que as plantas conseguem detectar mentiras humanas, as samambaias são sensíveis às nossas emoções e certas espécies de plantas conseguem efetuar comunicação intergaláctica com suas semelhantes. Também veio dele a hipótese do crescimento botânico a partir de músicas apropriadas. Além de Mort Garson, a obra também fascinou Stevie Wonder. Não tanto pelo conteúdo das teorias, mas pelo lado humano subjacente. A história que o livro conta é repleta de humanidade: quem são os cientistas marginalizados, caídos no esquecimento, e o que os levou até ali? 

Tome-se o exemplo de George Washington Carver: nascido escravo, foi um cientista de contribuições fundamentais para o conhecimento nos Estados Unidos do século XX, tendo dedicado sua vida a encontrar formas de plantio alternativas ao algodão e técnicas que aumentassem a longevidade do solo. Sua grande missão era que fazendeiros pobres conseguissem cultivar seu próprio alimento para subsistência, o que com muita frequência não ocorria dadas as péssimas condições do solo. Carver foi vítima do descrédito, e seu trabalho não teve o alcance que deveria. Stevie Wonder entendeu: por trás das pitorescas teorias do livro, havia histórias que ele precisava recontar. Mas elas não tiveram boa recepção: seu lançamento de 1979, o álbum "Stevie Wonder's Journey Through the Secret Life of Plants" marcou o fim antecipado de uma das melhores décadas de qualquer artista na história. Até então, era unânime que a sua sequência de discos lançados em 1973, 1974 e 1976 era completamente sem precedentes para um artista pop, tendo lhe rendido três Grammys de Álbum do Ano. Stevie Wonder era o maior fenômeno da época e a expectativa por sua obra seguinte era imensa, tendo se transformado em uma decepção vexaminosa. O disco foi totalmente incompreendido e ignorado, apesar da empolgação de seu criador. E não é nem um pouco acidental que ele tenha sofrido do mesmo desprezo que os heróis no centro da tragédia que ele narrava: ele sabia muito bem o que era viver isso. Apesar da obliquidade do disco, dos temas esotéricos, da divulgação do ocultismo, assim Stevie Wonder descreveu a obra ao The Washington Post: "apenas vem da minha vida". Tanto é que assim começa a faixa "A Seed's a Star": "We're a people black as is your night/Born to spread Amma's eternal light". O álbum estava longe de ser apolítico. Por trás de todas essas voltas, códigos e teorias, estava uma história tão velha quanto a civilização, tão simples e frontal. Pelo simples ato de notar essas histórias invisíveis, um novo caminho se fazia possível, e ele conhecia a importância disso.

"A life known by a few
And those who knew that shared
Their knowledge fewer cared
About what plants could do
For most felt it was mad to conceive
That plants thought, felt, and moved quite like we
(...)
It's that same old story again"

Simone Weil escreveu: "Nós que vemos o outro nas garras da aflição, nós somos obrigados, primeiro e acima de tudo, a prestar atenção". Foi ela mesma, aliás, quem publicou o livro "O Enraizamento" e esboçou uma explicação do que esse enraizamento se trata: "Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos de futuro". 

A relação de Plantasia com o enraizamento é ambígua. Por um lado, uma música sobre e para plantas, um álbum que acompanhava a passagem de bastão do cuidado de um ser vivo - dos funcionários da boutique aos novos pais de planta. A disseminação do álbum coincidia necessariamente com a multiplicação de vidas e um mundo mais rico em seres vivos do reino vegetal. Um disco que, da felicidade da capa à leveza transmitida pela música, passando pelo extremo cuidado presente nos encartes, em tudo é orgânico. Ele parece isso: uma celebração das formas de vida, uma utopia de existência coletiva, um culto ao orgânico. Em uma das poucas avaliações positivas do álbum de Stevie Wonder, John Rockwell publicou na Times, à época do lançamento: "Ele conseguiu fazer um álbum que, em sua própria maneira idiossincrática, parece um oásis de calma e paz em meio ao alvoroço do restante da indústria de música pop". Plantasia é exatamente isso. Em uma rotina alienada e tecnológica, essas músicas nos aquecem (a descrição "warm music" na capa foi muito bem escolhida) e parecem um verdadeiro achado. O efeito acolhedor e afirmativo que o álbum pode exercer sobre nosso humor torna a sua escuta um dos maiores presentes que alguém pode dar a si mesmo. A imagem do enraizamento nunca foi tão apropriada: um álbum sobre plantas pode ser a chave para colocar de volta, ainda que por instantes, nossa raiz no mundo.

Ainda que Plantasia tenha tal essência orgânica, por outro lado é altamente tecnológico. Os sintetizadores Moog, tão sofisticados para o padrão da época e ainda de acesso muito restrito, eram uma parafernália gigante que mais lembrava uma estação de controle espacial. Rapidamente no álbum o ouvinte já percebe o novo mundo ao qual foi transportado. Um mundo que, apesar de verde, de arborizado, com plantas preenchendo os espaços de canteiros planejados para o reflorestamento, repletos de um verde vivo e claro, que vibra o dia fortemente ensolarado, é um mundo futurista. O álbum lembra música de videogame e isso não é exagero: é sabido que o álbum teve literal influência sobre o que viria a ser a trilha sonora de Zelda, sendo "Concerto for Philodendron & Pothos" a faixa que mais carrega essas semelhanças. Todo o resto do disco é atravessado por outros lampejos da estética 8-bit que iria se popularizar nos jogos da Nintendo. A paisagem sonora que permeia o álbum também não está distante de lembrar ficção científica e excursões aeroespaciais. Além de já ter explorado extensamente o tema de OVNIs em sua obra, vale dizer que Mort Garson foi o contratado para compor a trilha sonora de aterrissagem do Apollo 11 na Lua.

Mas nada captura melhor a dicotomia orgânico-sintético do que a faixa-título "Plantasia". A soberania dos sintetizadores dura exatos cinco segundos: mal o ouvinte começa a acomodar a obra na gaveta de música eletrônica, entra um assovio como a epítome das coisas orgânicas, e já se entende que estamos no campo dialético. A orquestra que se segue, com sopro, adiciona riqueza instrumental à música e pavimenta o caminho emocional para que o restante do álbum tenha liberdade para se desenvolver. A melhor faixa e obra central do disco, tanto emocional como musicalmente, é "Swingin' Spathiphyllums". A única, também, que incorpora percussão. Se estamos falando de um álbum que celebra a vida em harmonia, a amizade entre espécies, os dias ensolarados, a felicidade gratuita, o poder aquecedor da música e a aceitação de todas as teorias científicas, a paz que se alcança nessa faixa não tem precedentes no disco. Ela encapsula o ouvinte e o faz esquecer que já tenha existido qualquer problema. O acolhimento é infinito.



É simbólico que um dos álbuns que mais contribuiu para a história da música eletrônica tenha sido um com a temática orgânica. O contraste entre beeps e assovios não é tema novo na humanidade: na exata medida em que crescia o fracasso em promover a longevidade das formas de vida terrestres, avançava a exploração espacial. O orgânico sempre esteve ali associado ao sintético, negativamente, não como uma dupla que harmonicamente o complementa, mas como uma persistente lembrança do fracasso, um estigma que se perpetua como maldição. O que não quer dizer, no entanto, que não se possa manipular esses elementos e produzir beleza na arte a partir disso. Se a civilização nunca conseguiu que os dois lados da moeda estivessem harmonicamente em convívio, Mort Garson fez questão disso e conquistou algo grandioso: as ferramentas tecnológicas mais frias e inorgânicas foram o veículo para produzir um dos discos mais nutridos de quentura humana que já existiu. E, quando as plantas são o tema de uma obra que não só é interplanetária em sua forma como também foi inovadora na história da música terrestre, Garson consegue outro grande êxito: ele coloca a natureza mais uma vez como estágio base de um processo evolutivo.

A própria exploração espacial, nesse novo sentido, assume um contorno que já não é negativo. A corrida espacial pode se tornar uma busca por novos ares sem isso implicar que o chão, a terra, tenham se perdido. Abandonar o esconderijo e se lançar em uma nova procura sem abrir mão da certeza de um conforto como o que Plantasia pode oferecer. A exploração do desconhecido não significa necessariamente se desenraizar. Em outras galáxias pode-se encontrar o orgânico e ecossistemas favoráveis à vida, pode-se criar enfim novos mundos possíveis.

A volta que o álbum dá, entretanto, é comum a diversas outras obras que exploram uma dicotomia semelhante, em especial as de ficção científica, que culminam na conclusão de que o tecnológico foi meramente um dispositivo para apontar aquilo que, o tempo todo, estava aqui. Plantasia não pontifica que essa deve ser a única conclusão possível. Eles celebram o orgânico por via do digital, sim, mas isso é longe de ser algo inevitável. Tome-se as obras de Hiroshi Yoshimura, outro ícone da música ambiente, que celebra o orgânico por meio do orgânico, sem qualquer estética clean como o presente em Plantasia. O feito de Mort Garson, em termos de utilizar a distância para re-enxergar a proximidade, se dá muito mais no âmbito social do que no da forma: ele redireciona nosso olhar.

Plantasia é um álbum sobre olhar. Quem vai dizer que as plantas não crescem quando a nossa escuta do álbum é fotossíntese? Dessa vez, o facho de luz que se lança sobre elas não é o da luz natural do sol, mas dos holofotes que elas temporariamente recebem quando esses primos esquisitos do reino animal, tipicamente tão ocupados e ensimesmados, pausam por um tempo para percebê-las. O movimento de Simone Weil de ter abandonado condições de vida mínimas e levar uma vida miliante na mais absoluta penúria, tudo como forma de trazer luz ao que estava esquecido. Essa configuração se repete em diversas outras relações que o álbum estabelece. Entre nós e a planta, entre nós e a obra, entre nós e George Carver, entre a música ambiente e o mundo. A relação entre música e plantas já existe e independe de nós: dois terços dos jardineiros usam música para cultivar seus jardins. São santuários musicais totalmente ao largo da nossa existência. O que a música ambiente faz senão redirigir o nosso olhar para o mundo de uma outra forma? Esse fenômeno alcançado por Plantasia é sinédoque do que a música ambiente já faz por essência: atrair o olhar para o decorativo, o ignorado, o invisível. Ela é a catraca que impõe uma pausa quando, convictos, íamos apressados em direção ao destino. O que Stevie Wonder entendeu foi que, se é mais fácil nos envolvermos por narrativas de teorias botânicas complexas para desenvolver algum tipo de olhar para o outro, que assim seja então. Que seja dada a volta pela galáxia, que sejam utilizados sintetizadores enormes, músicas de videogame, ocultismo e OVNIs, mas que não se perca a visibilidade dos spathiphyllums e philodendron que estão por aí. E, se quisermos avançar mais ainda, que seja dada a volta pelo reino das plantas para que se enxergue quem está ainda mais perto. Pode ser necessário usar o mais avançado aparato tecnológico aeroespacial para conseguirmos, por fim, criar raízes.


Pulse (2001), dir. Kiyoshi Kurosawa


O que é cultivar alguma coisa? Dentre os diversos espelhamentos que mencionei que se formam em Plantasia, existe aquele entre nós e a obra. Podemos verdadeiramente apreciar o álbum, não sendo plantas? Afinal ela não foi feita para nós. É insólita, alienígena, eletrônica. Não nos dá centímetros de altura. Para muitos pode não ser o disco perfeito. Bom, se o álbum torna tantas relações possíveis, podemos torcer para que nos faça crescer. Ou, se não isso, que ao menos a música cresça no ouvinte. Talvez ela possa ser cultivada com sucesso, numa estufa ou sacada.

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