sábado, 28 de dezembro de 2024

#4 - O terceiro mundo vai explodir

O maximalismo de Rachika Nayar testa os limites quando os meios de expressão já não dão conta

"sentimentalidade cataclísima". É assim, em letras minúsculas, que a artista preenche sua bio na plataforma Spotify. Onde muitos enumeram fatos biográficos ou empilham descrições de traços da obra, quase sempre em terceira pessoa para dar aquele ar de profissionalismo, a compositora indiana-americana faz uma escolha que, para os desavisados, poderia indicar que se trata de alguém com uma música tímida, fugitiva de qualquer conflito. Mas o cataclisma sugere a verdadeira direção: é nas maiores alturas que Rachika Nayar encontra a redenção dos sentimentos.

Rachika nasceu na Pensilvânia, é verdade. Mas de família hindu, ela mantém conexão próxima com a tradição em sua rotina. "As imagens no audiovisual da minha obra com frequência derivam fortemente dos meus sonhos, que na minha cabeça têm uma relação especial com essa linhagem de misticismo familiar", ela diz no material do álbum Our Hands Against The Dusk, de 2021. A faixa "Aurobindo" homenageia o yogi indiano Sri Aurobindo, em cujo eremitério um dos membros da família de Rachika Nayar teve um momento de darshan (uma espécie de visão do divino). Essa faixa é a penúltima de uma jornada emocional de altos que são muito altos e baixos que são muito baixos (tudo isso feito com muita beleza, diga-se), um disco que leva o ouvinte a lampejos de contemplação do sublime e a momentos de uma angústia que parece não ter fim. Os primeiros segundos da primeira faixa "The Trembling of Glass" já definem uma pulsação que apresenta o que será a paisagem caótica em que se localiza o álbum. O ritmo inicial é rapidamente sobreposto por outros ritmos que Rachika propõe, mas como um mantra ele retorna em momentos posteriores e mantém algum senso de orientação. O som aberto e expansivo dos instrumentos ambienta muito bem o disco como um local de acontecimentos espirituais, e logo cedo entra a segunda faixa como a coisa mais importante desses 40 minutos. "Losing Too Is Still Ours" é a mais bonita de todas, desde o maravilhoso título, que faz referência ao ainda mais sensível poema de Rainer Maria Rilke, até a música que encapsula um sofrimento de extrema profundidade. Única aparição de algum tipo de vocal no álbum, o lamento de uma alma vem em forma de um grito que se distorce e se torna grave como o pranto que ecoa nas superfícies cavernosas do submundo. Um pouco depois da segunda metade, a faixa ganha um ritmo novo que passa a movimentar o final do drama com colorações de esperança. O restante do disco volta a transitar algumas vezes entre esses extremos, a música espaçosa nunca deixando fechar os canais de expressão daquela desmedida sentimentalidade a que a descrição do Spotify aludiu. Caminhando para uma resolução, a faixa Aurobindo se segue a um trecho do álbum que andava sombrio, e transmite com louvor o momento de darshan que o membro da família viveu no templo de Sri Aurobindo. Se estamos falando de cataclisma, essa faixa é o epicentro da narrativa do álbum, e sua atmosfera limpa, um contraponto de clareza, serve como liberação das angústias a que estivemos expostos nos minutos anteriores. Em "No Future", violinos entram no meio da música e preparam os minutos finais do disco, compostos por um solitário piano que, longe do maximalismo, consagra a iluminação obtida na faixa anterior, e finaliza a obra em um estado temporário de paz.

Mais importante do que a origem familiar, nos álbuns de Rachika estão presentes os canais que definem linhas subterrâneas de comunicação entre vidas do terceiro mundo. Num plano um pouco mais evidente está o fato de ela ser uma artista transgênero. Eu não vou aqui ousar compreender profundamente a relação entre artistas trans e música eletrônica para além do óbvio que a linguagem já induz, a trans-formação que, no caso da música, se manifesta por meio do digital e da manipulação dos sons em contraponto ao "acústico". Por cima da superfície, o que se pode inferir é simplesmente aquilo que se pode ver, e o que se vê é um absoluto brilho de artistas de gênero não-normativo na cena eletrônica, fruto do domínio sobre as ferramentas que modificam a música e do engenho de se imaginar recombinações e criações de vida onde a maioria só acredita ser possível o que está dado, o que fisicamente é visível. As referências são vastas, a começar pelo trabalho revolucionário de Arca e SOPHIE. No hyperpop, os projetos ainda precisam de maturação, mas o potencial está ali: Frost Children, underscores, Laura Les do 100 gecs, Dorian Electra. Não é que essa seja a única possibilidade de expressão - isso é muito evidente - apenas se torna difícil ignorar o sucesso estrondoso no ramo.

Dentre os códigos presentes na obra de Rachika Nayar que permitem que habitantes do terceiro mundo se entreolhem e se reconheçam, pode-se deixar um pouco de lado a biografia e notar o traço formal do exagero. Entre erros e acertos, Ed Motta uma vez esboçou um bom elogio a essa decisão estética, comparando o uso máximo da voz ou dos instrumentos às tradições competitivas do jazz. No nosso caso aqui, não se trata do uso da voz, nem de um instrumento analógico como o saxofone, mas de potencialidades ainda mais frontais geradas pelo tecnológico. Conceitualmente, o exagero não é mais do que um exibicionismo. Mas é precipitado atribuir a ele um tom negativo: frequentemente, tem a função de romper a ordem do que seria um fluxo natural de expectativas e atrair, de forma meio metalinguística, meio fática, a atenção para a própria apresentação da obra de arte. Por definição, ele é aquilo que é desnecessário, que está em excesso. O exagero é o passo dado a mais pela dançarina, a firula final do pianista, o drible do jogador de futebol. Ele promove uma suspensão do tempo e chama a atenção para si próprio: o que é que esse artista quer que eu veja? 

De um ponto de vista social, ele se torna especialmente interessante quando justaposto às formas de controle. Na psicanálise, os diagnósticos de histeria feminina. Na religião, a categorização do riso como heresia. Nunca faltaram formas de tentar coibir tudo aquilo que é estranho, que brilha mais, que ameaça. No caso do riso histérico, da caça às bruxas, a insegurança faz as estruturas de poder reagirem àquilo que ainda não sabem nomear, a um modo estridente de estar que os assusta, que lhes escapa da linguagem (e é um ponto cego da linguagem mesmo, porque inerente ao exagero, como a manifestação artística que é, está o espanto presente em qualquer momento de sublimação). O dispositivo de controle se revela hoje até mesmo no modelo europeu de futebol. A anulação da inventividade, do "caos" terceiromundista, a homogeneização de processos, tudo isso reflete uma ojeriza à vida, um projeto de manutenção da ordem, da imutabilidade, e por isso mesmo do não-ser. É nesse cenário que, mais do que nunca, se faz necessário defender as cenas de sexo "gratuitas", os gestos artísticos desnecessários, o drible em direção ao gol contrário nem que seja somente para provar ao futebol europeu um ponto. É pra humilhar, sim. É a celebração da própria sensualidade, que me lembra quando Alicia Keys, em palco, percebe o próprio corpo e passa a se deliciar com o momento, empilhando segundos a mais em que se detém numa coreografia que já não é a planejada, que absolutamente não é natural, mas que arrebata a plateia e a faz abrir um sorriso de quem sabe que estreou uma dimensão paralela, onde o tempo passa diferente. O meio tem ficado tímido. Uma era conteudista faz parecer que a forma não importa mais, e que os canais são meros veículos incumbidos de transmitir uma mensagem. É necessário que deixem de ser só veículos. A atenção tem que estar também sobre eles: precisamos de metalinguagem.

A linguagem de Rachika Nayar para o exagero é a guitarra. Já presente no primeiro disco, mas também em seu segundo, Heaven Come Crashing, está uma característica que a distingue de enorme parte da cena ambiente e eletrônica. Raramente ela produz os sons melódicos de sua música por meio de sintetizadores: seu instrumento é a guitarra, e a manipulação dos sons, a produção de sinais digitais, se dá por meio da distorção desse instrumento. Mais maximalista do que o primeiro, Heaven Come Crashing leva a novas alturas os sentimentos e o volume, usando uma estrutura muito mais orquestral do que no projeto anterior. Junto com isso, aumenta o número de ocasiões em que Rachika usa a díade desaceleração-para-acelerar-logo-depois, ou a criação de desarmonias para em seguida resolver melodicamente de forma triunfante. O centro - emocional e técnico - da obra é a faixa-título, que faz um bom cartão-postal do que é o projeto como um todo: essa pequena amostra varia entre volumes altos e baixos, que no começo chegam a ser sussurros, entre momentos sem qualquer percussão e o momento eufórico no qual, a partir da metade, a faixa se torna o mais tradicional exemplo de post-rock, uma banda completa com uma extravagante bateria que torna a música completamente acelerada.

Heaven Come Crashing trata de desorientação, e a faixa "Nausea" cumpre um bom papel em transmitir isso. A capa do álbum serviria também para o Our Hands Against the Dusk, para os EPs, serve para a o que é a obra de Rachika Nayar até aqui. Em meio ao movimento esmagador da cidade, ao volume ensurdecedor dos sentimentos, Heaven Come Crashing busca algum tipo de orientação. Desde o nome do álbum invocando uma hecatombe, em cada detalhe esse projeto faz questão de situar o ouvinte quanto ao absoluto caos em que está inserido. É o "Strobe lights/ And blown speakers/ Fireworks/ And hurricanes", do Radiohead. Procurar orientações, traçar mapas, é diferente da "procura de ordem em meio ao caos". Isso é clichê primeiromundista. A imagem da capa do álbum explica: é cataclísmico, mas é também sentimentalidade. Em meio às impressões do mundo externo fora de foco, está o humano. 

É certo que em alguns casos Rachika parece abusar da fórmula de criação de tensão seguida de um clímax apoteótico, algo que, com um mero descuido, pode lembrar Hollywood em sua artificialidade. Mas no contexto dessa análise, como falar em abuso como algo pejorativo? Quando falei em redenção dos sentimentos pelo maximalismo, é da imagem da capa que tudo isso se trata: duas figuras humanas tentando se amparar, buscando não cair junto com o céu que desaba em torno deles. Rachika Nayar cria um campo incondicional de acolhimento ao nos prometer que, qualquer que seja a hecatombe interna, vai haver um som mais alto nos nossos ouvidos. Qualquer que seja a intensidade do sentimento, a vastidão sonora de sua música vai dar vazão. Ela garante isso. É como um sistema de coordenadas, em que cada eixo corresponde a uma nova dimensão: a nossa necessidade é de quantos eixos? O sistema que ela criou tem mais do que isso.

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