terça-feira, 13 de maio de 2025

#7 - Sismografias de Vizinhanças Vol.I

Compilação reúne e potencializa inquietações subterrâneas

Foi vendo as cenas de abertura de Twin Peaks que eu primeiro me importei com a espessura das coisas. Um disco de serra tendo seus dentes de metal milimetricamente afiados. Os movimentos coordenados, pausados, do afiador e de um braço mecânico que precedem as descidas do primeiro sobre a lâmina, avançando sobre o material com velocidade uniforme, rasgando-o de forma terapêutica, quase suave, uma sensação concreta da materialidade do disco. Assimilamos de uma só vez, como que sentindo em nós mesmos, as propriedades físicas exatas dos dentes da serra: a resistência do material, o atrito que explica o ritmo lento e esforçado da descida do afiador. Mas que esse apaixonamento tenha ocorrido em específico por máquinas industriais e uma serraria foi totalmente obra da contingência, mérito do sequestro dos sentidos por Lynch e Badalamenti, que poderiam nos seduzir a amar qualquer banalidade que romantizassem naquela abertura. Por essa obsessão ter começado no contexto de Twin Peaks, a introdução da indústria no meu sistema de afetos se deu, historicamente, muito mais associada a alguma tranquilidade idealizada do que a algo necessariamente destrutivo. Como escapismo de um tempo em que o trabalho exige nossa devoção psíquica, demandando proatividade e premiando mais os funcionários quanto maiores forem seus índices de ansiedade, projetei talvez numa cidade pacata, dependente de uma pequena serraria, os ideais de uma comunidade em que tudo funciona em seu devido lugar. A serenidade do pássaro que contempla seus arredores, uma visão distanciada da fábrica de cujas chaminés a fumaça sai inabalável como se fosse uma lei da natureza, em seguida três planos consecutivos descrevendo a afiação das serras, e por fim a fisicalidade de um tronco, imponente e maciço. O senso de aterramento. Esses seis primeiros planos, todos, embebidos num tom sépia que estabelece a ambientação terrosa, a consciência das sensações físicas e de estar preso ao solo. Os planos dos discos de serra, no contato do afiador com a lâmina, apresentam as faíscas em cor dourada, que ainda se encaixa nos tons propostos mas domina completamente o restante, como o fogo que se destaca na lareira em uma noite fria, no interior de uma casa de paredes amadeiradas. São poucos os outros casos em que a arte consegue me trazer um senso de fisicalidade tão isento de intermédio, tão perto da experiência. Algumas esculturas de Michelangelo. As fotografias de Robert Smithson. O chiado que se ouve de forma mais proeminente em discos de vinis antigos. Os grãos que se formam na fotografia analógica. O álbum "An Imaginary Country", em que Tim Hecker sozinho criou as formações geológicas de um país, com toda a sua pressão atmosférica e densidade do ar. A música noise, de modo geral.



A teoria da informação faz uma distinção conceitual entre o sinal e o ruído. O sinal pode ser entendido como uma mensagem que um emissor quer passar a um receptor. O ruído, por outro lado, é toda interferência que prejudique a captação da mensagem pela parte receptora, ou informações transversais que não se relacionam com o conteúdo da mensagem principal. Desenvolveu-se uma ciência inteira, chamada processamento de sinais, com o objetivo de tornar eficiente o fenômeno de transmissão de um sinal elétrico: minimizar a perda informacional otimizando o sinal e reduzindo o ruído. É curioso que a música noise (ruído) tenha sido analisada por Aden Evens, em seu livro "Sound Ideas", por esse prisma conceitual: "é o ruído que alicerça o sinal, que serve como um meio, uma base, um plano de relevo contra o qual o sinal se destaca". Um segundo livro chamado "Reverberations", de Goddard, Halligan e Hegarty, comenta: "O uso da palavra 'relevo' sugere uma imagem geológica. O ruído é como a camada subjacente da qual o sinal, com seu conteúdo informacional, emerge em relevo, sob pressão de forças tectônicas. O sinal se relaciona com o ruído tal qual uma montanha emerge de um solo em constante deslocamento. A montanha é uma testemunha silenciosa da ação passada de forças emergentes da terra, e da certeza de que futuros deslocamentos tectônicos continuarão remodelando a paisagem. Como um pico, o sinal se destaca contra as forças generativas e regenerativas de sua própria formação tectônica". Essa é uma visão que, embora desalinhada com a teoria da informação em sua formulação estrita, permite uma interessante reelaboração do que é ruído: não um elemento que se soma ao sinal numa tríade que inclui o "nada", mas a perfeita antítese do sinal num modelo binário em que só ele e o ruído existem. A própria existência do sinal só é viabilizada, portanto, porque existe o ruído em primeiro lugar. A clássica e simples frase de John Peel, o primeiro apresentador de rádio na história da BBC Radio, ajuda a defender essa ideia: "Alguém estava tentando me dizer que CDs são melhores do que o vinil porque não têm ruído de superfície. Eu respondi: 'Escute, amigo, a vida tem ruído de superfície'".

Foi nesse contexto que me interessei pelo disco Sismografias de Vizinhanças, Vol. I, organizado por George Christian. Além de articular trabalhos independentes da cena brasileira de música experimental, o que vale por si só, o projeto pareceu compreender, talvez num plano pré-linguístico, a importância da atividade sísmica como causa e sintoma de uma entropia que infraestrutura uma realidade caótica, ruidosa e sempre em movimento: são essas inquietações subterrâneas que explicam o movimento constante das coisas aqui em cima, seus cismas, rupturas e erupções. Logo percebi que a missão do projeto de amplificar ruídos da música independente significava um acesso direto a essas camadas subterrâneas. 

Escreveu Proust: "Não se pode compreender a que ponto essa inquietação agitava e, por isso mesmo, havia enriquecido momentaneamente o espírito do sr. de Charlus. Assim, o amor provoca verdadeiras convulsões geológicas do pensamento. No do sr. Charlus, que ainda poucos dias antes se assemelhava a uma planície tão uniforme que, na maior distância, não se poderia perceber uma única ideia ao nível do solo, tinham-se bruscamente erguido, duras como pedras, um maciço de montanhas, mas de montanhas que fossem igualmente esculpidas, como se algum estatuário, em vez de transportar o mármore, o tivesse cinzelado no local e onde se retorciam, em grupos gigantes e titânicos, a Fúria, o Ciúme, a Curiosidade, a Inveja, o Ódio, o Sofrimento, o Orgulho, o Receio e o Amor".

É de criaturas do submundo que se ouve os lamentos e denúncias, pensei antes de ouvir Sismografias de Vizinhanças. Tal preconcepção foi confirmada na minha escuta. E, mais do que isso, duas boas surpresas contribuíram para minha apreciação pessoal: a presença representativa de músicas do "gênero" noise e a recorrência do mote industrial nas faixas ao longo do disco. Um primeiro apaixonamento meu por indícios de fisicalidade na arte que se deu por intermédio de David Lynch esteve obviamente sujeito a seus tiques sensoriais e sua obsessão pela fábrica, resultando numa relação com a materialidade das coisas que nunca está completamente dissociada do tema industrial. Que o noise tenha essencialmente uma missão política de revolução e uma estética de incorporar a decadência tornam essa aproximação com uma sociedade pós-industrial ainda mais natural, e o resultado é um disco que consegue transmitir a espessura e a densidade de suas músicas, que sonicamente incorpora os grãos de um filme analógico, que lembra a sensação de aterramento e experimenta com relevos e formações rochosas a partir de placas que se chocam. Por desígnio e por características imanentes, não deixa dúvida se tratar de um disco geológico. 

A pesquisadora em cinema Kim Knowles, em artigo publicado em 2016 no "Cinema Journal", identificou o fenômeno recente que chama de virada material: a tendência que vemos na teoria política e nos estudos culturais de um resgate do materialismo. Isso encontra lastro na realidade quando observamos a profusão de autores que tem ganhado popularidade advindos dessa escola, epitomizados na figura de Mark Fisher. Assim percebi que meu interesse pela textura não era nada mais que a minha virada material, inserido no contexto de um processo mais amplo. A autora explica, por meio dessa virada material, a recuperação que vem sendo feita dos processos artesanais de produção de filmes, com um notório destaque para o analógico. Isso fez nascer no cinema, por exemplo, o movimento de slow cinema, em que o tempo é incorporado à obra como um elemento físico. Alguns experimentam com processos bioquímicos para capturar a materialidade do tempo, como os filmes sem câmera, que envolvem o aterramento ou a submersão de um rolo de filme na água, ou de forma geral sua exposições a condições climáticas diversas. "A habilidade que o filme tem de capturar a influência do mundo material em seu corpo de celuloide pode ser entendida ao mesmo tempo como uma ética e uma estética da lentidão. Por um lado, o processo envolve um investimento temporal da parte do realizador que implica a arte de esperar; por outro, os filmes registram uma temporalidade geológica e ambiental profunda que apresenta uma alternativa às noções humanas de eficiência e instantaneidade embutidas numa sociedade predicada na velocidade. O diálogo que se dá entre o substrato material e o ambiente (solo, vida das plantas, água, ar) pode ser registrado somente por meio do tempo, conforme o decaimento bioquímico acontece em resultado do contato prolongado com os elementos. Esses processos fílmicos 'terrosos', então, nos pedem para voltar nossa atenção aos ritmos do mundo natural e para (re)considerar, pelo meio do celuloide, outras possíveis formas de ser". Observando fenômenos tipicamente leblônicos e ipanêmicos, fica fácil explicar a explosão da cerâmica e da carpintaria como os denominados "hobbies" não só por sua "estética da lentidão", mas porque essa estética está associada a trazer à vida uma necessária tangibilidade, que tem estado muito em falta. De fato, centrais para a temática da lentidão no cinema analógico são o investimento corporal e agência. A "fisicalidade laboriosa" da tecnologia analógica reage ao "mundo incorpóreo e inumano" proposto pelo digital. Jonathan Sterne já havia escrito sobre o que chamava de "metafísica da gravação", a ideia de que "mediação é algo que pode ser medido em termos de sua distância para a vida", se supusermos que uma gravação captura certa quantidade de vida e que, "conforme uma gravação atravessa um número de etapas tecnológicas cada vez maior, a quantidade de vida diminui, essencialmente movendo-a (e talvez o ouvinte) em direção à morte". O trunfo do noise - nitidamente um gênero intenso em digitalização - se dá, nesse contexto, no âmbito estético e no âmbito político. No político, por não se contradizer quando abraça uma estética digital: se isso está associado a uma ausência de vida, é porque cumpre a função de não nos deixar desviar os olhos para o que de mais extremo existe na nossa realidade material. Se o que existe é um cibercapitalismo em fase avançada de decaimento, é isso o que aparece nos lamentos ruidosos do submundo. No âmbito estético, o trunfo do noise é capturar os processos físicos como se fosse um filme atravessado por tais reações bioquímicas. A modernidade trouxe a ideia de objetos artísticos como coisas a serem preservadas e admiradas à distância, sem contato. Seu valor parece maior quanto menos "tocáveis" eles forem. Algumas insurgências foram feitas contra essas ideias, desde diversas instalações artísticas até projetos na música: Pierre Schaeffer e sua ideia de objet sonore e Iannis Xenakis, que incorporou influências de sua carreira na arquitetura em projetos musicais. O noise é mais um empreendimento que consegue traduzir sensações de matéria nas ondas sonoras, provando que vibrações musicais têm o direito de se reinvindicar como da ordem do tátil. 

A capa de Sismografias já indica que não estamos diante de um catado de faixas mas que, com uma identidade visual compartilhada entre as partes que compõem o mosaico, o projeto pretende ter alguma unidade. A primeira faixa, "Trem Fantasma da Vasconcelândia", de Löis Lancaster, cumpre com seriedade seu papel profetizado no título: nos recepciona a bordo do trem dentro do qual vivenciaremos a iminente jornada. A arquitetura lúdica deste trem e a paisagem que vemos do lado de fora pelas janelas, ele ainda parado, revelam um parque de diversões sem vida e que cai aos pedaços. Uma voz feminina perturbadora e estridente introduz os entulhos e destroços de concreto que compõem um cenário árido debaixo de letreiros de neon estourados e sem luz, placas penduradas por um fio, rostos de palhaço e bonecos de cera gigantes, sorridentes e bochechudos, em espaços liminares cuja extinta vida se justapõe com ironia à total devastação constatada no presente. Algo como um manifesto é esboçado: "quantos deram suas vidas pra que nada acontecesse?". Estão explicadas a decrepitude e o abandono do lugar que já foi palco de acontecimentos-de-vida. A segunda faixa, de 4zero4, nos coloca em movimento bem lentamente, mais servindo para ambientar a vista monótona, introduzindo um melancólico estado de suspensão. Toma-se consciência da ampla dimensão do local, que, com a ausência humana que o tornou deserto, reverbera sons no vazio, sem esperança de encontrar tão cedo um receptor. Em "Clases de piano", Animal Cracker apresenta um fundo cheio de ruídos em que sinais tentam persistentemente ser emitidos. O animado riff em primeiro plano explora com nostalgia algumas das áreas que já foram alegres, acompanhado ao fundo da faixa por brincalhonas bugigangas industriais, úteis no passado e agora parte do entulho que já pertence à solidão do local. Conforme o trem anda, "Falso Alarme" segue desenvolvendo as relações entre ruídos e sinais e apetrechos industriais esboçando alternância entre estados de vida e morte. Em "Ainda Hoje", de bruno nobru, uma pausa acústica que conseguiu temporariamente se libertar da opressão tecnológica que alcança até mesmo o cenário devastado. Faixa reflexiva e, no entanto, muito melancólica, talvez por sabermos da transitoriedade desse alívio, e certamente pela constatação finalmente assimilada do devir, fruto da comparação entre o antes e o agora. Em seguida Guilherme Darisbo continua a investigação acústica mas numa aparente consequência da descoberta anterior. A reflexão é menos nostálgica, e já se propõe um pouco mais à ação, começando a se dar conta de seus entornos e experimentar com objetos variados que se apresentam disponíveis. Potências e alternativas são esboçadas, ainda num plano teórico, sem a violência e o ímpeto de percussões e barulhos. Em "Quiromusicomancia", de Beto Jr., os debochados fantasmas do passado e um determinado senso de reação e sobrevivência no presente convivem. A decadência percebida não se impõe mais como sina: embora o ambiente seja ainda arrasador, aprende-se não necessariamente a aceitar viver aqui, mas a aceitar aqui como um ponto de partida, como plataforma de alguma agência possível. "Sirena Sirene", de Heitor Dantas, retorna com um pouco mais de desolação. A faixa se entrega à letargia e volta a ver o aparato tecnológico não como uma ferramenta de escape, mas como elemento que ambienta e caracteriza essa distopia. Reações esboçadas são constantemente interrompidas na medida em que máquinas periodicamente rodam e voltam a falhar. Um processo de erosão: a persistência de eventos esparsos, destrutivos, que só fazem avançar a degradação. Parecemos estar sem saída.




Diante de tamanha desorientação, como podemos encontrar uma geografia habitável ou, pelo menos, alguma pista de um caminho de fuga? Tudo parece tão desoladoramente perdido que a esperança se tornou um artigo de luxo. Em "Onde Aterrar?", Bruno Latour (um dos maiores responsáveis pela "virada material" que Kim Knowles descreveu) se dedicou a analisar a jornada da civilização em alta velocidade para o colapso climático, e o nome do livro parece ter o mesmo desejo de concretude que temos ao escutar o disco. Sua proposta para conseguirmos aterrar passa por escapar da dicotomia Localismo/Globalismo, que nos impede de nos mobilizar de forma coesa para a resolução dos problemas. Para isso criou um novo conceito, que é ao mesmo tempo um ator-político: o "Terrestre", que reage às ações humanas e, justamente por ter essa agência, precisaria ser levado em conta em nossas decisões coletivas. O Terrestre é uma postura que nasce do reconhecimento da nossa interdependência com outros seres vivos e com o planeta. Somente a partir deste conceito poderíamos encontrar um Solo comum onde aterrar. "Do solo, o Terrestre herda a materialidade, a heterogeneidade, a espessura, a poeira, o húmus, a sucessão de camadas, os estratos, a surpreendente complexidade, a necessidade de acompanhamento diligente e de um cuidado minucioso". 

Esse é o mesmo Bruno Latour que, muitos anos antes, havia publicado o ensaio "Can we get our materialism back, please?", em que mostrou também se preocupar com a robustez das coisas. Usou como ponto de partida o exemplo da vista explodida, muito usada no desenho técnico para promover uma visualização didática dos componentes de uma máquina, aquele diagrama que representa as partes bem afastadas uma da outra, como se entre elas existisse um vazio que, na realidade, não existe, mas facilita entendermos parte a parte sua composição. Ele argumenta que um desenho ser idealizado por um engenheiro com todas as suas partes separadas e, depois, ser transformado numa única entidade funcional, que tenha todas essas partes integradas e que sobreviva por conta própria resistindo ao passar do tempo e à deterioração, são duas formas de existência totalmente distintas. Ele questiona: se isso parece óbvio, por que com tanta frequência agimos como se a matéria em si fosse feita de partes que se comportam como aquelas dos desenhos técnicos, vivendo no reino atemporal e imutável da geometria, e não como uma unidade na realidade? Para Latour, isso se explica porque nossa visão de materialismo não era na verdade muito material, mas antes uma visão ainda idealizada. A descrição de algo pela forma geometrizada, como na vista explodida, é a visão idealista, que produz objetos, cuja descrição é sempre magra, e que tem uma definição ideal da matéria. Essa também é, como escreveu Ken Alder, a forma como antropólogos usam descrições etnográficas para reduzir ações coletivas a uma matriz simplificada de comportamento que as expliquem, apenas a título de exemplo. Uma segunda maneira, no entanto, que é mais desejável, dá origem de fato às coisas e captura a sua "coisitude". Essa é uma descrição robusta, que tem uma definição material da matéria. Ele mesmo alerta que não se trata de uma divisão entre representações geométricas sendo sempre abstratas, frias ou mortas, de um lado, e representações pelo aço, bronze ou madeira sendo sempre concretas, acolhedoras e vivas, por outro, mas que é um aviso sobre a necessidade de mantermos a consciência de que as partes, na realidade, seguem sempre seus próprios caminhos.

A busca por coisas robustas me parece especialmente mais importante quando vivemos no que chamo de "república Fábio Brazza", o rapper de condomínio querido pelas avós que assistem Leandro Karnal e escutam Michael Bublé, que dizem que "esse Kaká tinha que ser exemplo para mais jogadores" ou "vejam como esse Caio Coppolla é educado, como é erudito e argumenta bem". O hip hop certinho, gente boa, bem comportado. Curiosamente ele também já teve sua virada geológica, e sem muita profundidade nos deu a seguinte letra: "E o que era Pangeia hoje virou pandemônio/ Há um muro de Berlim em cada esquina". Quando digo que somos a república Fábio Brazza, falo de certa relação desenvolvida com a colonização, bem como da forma de tratar o nosso talento (ou commodities, ou recursos naturais...). Fábio Brazza é o herói dos garotos prodígio, que frequentemente se confunde com o messianismo, como no famoso modus operandi da carteirada bolsonarista que é fundamentalmente brasileiro: "Trouxe aqui esse menino, o moleque entende muito de computação, de olimpíadas de matemática do colégio. Hoje vai comprovar o problema das urnas eletrônicas". O eficaz arquétipo do garoto "talentoso" (o gênio sem certificações) se alinha ao queridismo das avós e sempre encontra terreno fértil para recepção. Embora a carteirada seja mais caracteristicamente brasileira, o culto ao virtuosismo, em si, não é exclusivo, e me lembro distintamente quando, quase 10 anos atrás, vi algum vídeo recomendado pelo Youtube sobre o mais novo garoto prodígio da música, o nerd que estudou música em grandes universidades ("fez Harvard") e se divertia aplicando "vários avanços da teoria musical" com aparente facilidade em sua arte. Suas participações até então se restringiam a se exibir em programas de auditório tal qual uma atração de circo, mas guardei o nome - "Jacob Collier" - tamanho o trauma. Só por esses dias, muitos anos depois, lembrei espontaneamente do nome e uma curiosidade mórbida me levou a pesquisar seu paradeiro. Obviamente sua produtização lhe concedeu uma carreira de sucesso na Indústria, e ele parece ainda estar por aí: agora sim, com algum corpo "artístico", fui escutar e não é surpresa que tenha achado ruim. O problema dessa cultura do virtuosismo e da exibição em "show de talentos", em "The Voice", que herdamos dos Estados Unidos, é que o grande atributo especial é o sujeito ser "bom" (veja que interessante isso que ele faz, veja como você esperava que ele fosse fazer uma coisa e ele foi lá e fez outra). Jacob Collier parece hoje ter investido num intenso "branding" que o vende - acho que não percebeu - como se fosse na verdade um apresentador do Art Attack, um cabelo curto e arrepiado com roupas coloridas para insinuar que é "arrojado", criativo e "doidinho". A dinâmica de circo continua, em que se apresenta à plateia não como um artista em conexão com seu público, mas como um mágico que vai deixar todos "boquiabertos" (e fazer o Simon Cowell aparecer em um close com os queixos caídos e um sorriso perplexo). Mas naquela coisa tecnicista não existe mágica, somente aplicações e aplicações de fórmula e de teoria musical. Fábio Brazza foi a maior sensação em sua época, e grande parte do apelo vinha dessa mesma origem, a de "Como foi sagaz essa rima que ele fez! O cara é fera". Só quando introduzimos em cena um Outro é que o fenômeno volta a ser particularmente brasileiro: a figura do colonizador, ou o "Simon Cowell", que para nós é mais pesado do que para Jacob Collier. É sob o olhar deste Outro que validamos a existência dos nossos talentos, numa configuração evidentemente vira-lata, o que não é novidade nenhuma. E então nos colocamos perpetuamente na posição de república que está no palco dentro de uns holofotes, objeto de riso da plateia, tentando impressionar e fazer virar cadeiras. Daí surgem os rappers de cursinho, de aulão pré-vestibular, que escrevem letras que poderiam levar ao especial de fim de ano da Globo, seguidos por um "We are the world". Um reformismo, música que veio do próprio sistema, a avó que prefere que o neto tenha uma revolta estéril e grite com ela usando rimas "sagazes" do que enfrente os perigos da rua. Qual seria a antítese de um artista desses? Uma música suja, geológica, de detritos e sedimentos. E se até aqui eu disse muito sobre as "sismografias", falo agora sobre as "vizinhanças". O disco analisado abraça o projeto de ser uma antítese de Fábio Brazza, não por cultivar uma falta de talento, que por óbvio está muito presente, mas pela reorganização estética desse insumo. Por colocá-lo a serviço de algo com valor político, que tenha alguma substância, que seja robusto. Ao fazer uma varredura das vizinhanças, estão em nosso redor as respostas que nos levarão para uma localização melhor.  

De novo Proust: "Todas essas lembranças reunidas umas às outras não formavam mais que uma massa, mas nem por isso eu deixava de perceber entre elas - entre as mais velhas e as mais novas, surgidas de um perfume, e depois as que eram somente lembranças de outra pessoa, que as passara a mim - senão fissuras, verdadeiras fendas, pelo menos essas nervuras, essas misturas de cores que, em certas rochas e certos mármores, revelam diferenças de origem, de idade e de "formação". Proust apresenta agora um novo elemento a ser associado à concretude das coisas: a memória. Se a memória está amarrada às coisas materiais (não só em ideia, em nos lembrar das coisas, mas se ela está nas coisas), ela também tem espessura. Bjørnar Olsen faz uma associação parecida em ensaio publicado no livro "How Matter Matters", em que destaca não só a importância da memória, mas chega a descrever em maiores detalhes como ela, indiretamente, se materializa, tomando forma concreta e se solidificando em nossos arredores: "Ao longo da história humana, essa reafirmação da estabilidade como o estado normal das coisas pode dificilmente ser exagerada. (...) A solidez e persistência são propriedades de ferramentas, paredes, cômodos, casas, ruas, cidades, montanhas e tudo o mais que fazem diferença vital na vida humana. (...) Essa confiada durabilidade também permite um outro efeito intimamente relacionado: o acúmulo ou sedimentação do passado. Esse acúmulo em si autoriza processos e desfechos que, pelo menos até certo ponto, são imprevisíveis e envolvidos por trajetórias materiais que criam suas próprias afirmações de significação de como o passado é concebido e reconstituído". Poderíamos ficar preocupados com a implicação política desse pensamento: estamos elogiando então a imutabilidade? Mas o trecho seguinte nos tranquiliza: "Cortar uma árvore, afiar uma pedra até a perfeição, construir uma rodovia e dirigir um carro, tudo isso contribui para a impressão de um 'mundo de processos' que está sempre em transformação. Também contribuem para isso as forças e ritmos da natureza, que lentamente ou de forma mais abrupta estão mudando a fisionomia da paisagem e as condições para a vida humana. As próprias coisas mudam, envelhecem e murcham, como o mundo material também está sujeito aos processos de ruína. Portanto, além da solidez do mundo material, há uma multidão de mudanças dentro dessa massa operando em diferentes escalas e diferentes ritmos. Não há contradição entre essa noção de um 'mundo de processos' e as noções de estabilidade, permanência e 'estar-ali'". Em outras palavras, buscar conforto na matéria não implica a falta de movimento. Podemos procurar a solidez da passagem do tempo sedimentada, materializada nos diferentes meios que nos rodeiam, sejam eles musicais ou de qualquer outro tipo, e a partir disso cultivar uma relação frutífera com a memória. Olhar para trás não significa não andar para a frente e, na música, podemos encontrar uma espessura sensorial sem jamais abraçar a inação. Nos movimentos tectônicos da vizinhança, aqui de perto, encontraremos a arte que, por sua força vital própria e pela nossa busca íntima na memória, nos permitirá, na jornada em que nos encontrávamos pelo parque de diversões mal assombrado, um ponto de virada para superar o momento de desolação e desespero que a faixa "Sirena Sirene" introduziu. 


Robert Smithson, 1969 
Collection SFMOMA, © Estate of Robert Smithson / Licensed by VAGA at ARS, New York


A reviravolta começa na faixa "Fx 34", de Luvebox FX, em que uma guitarra desejante parece explorar imaginativamente outras paisagens, imaginar novas geografias e rememorar geografias antigas, embora a prisão às condições materiais do lugar atual ainda se faça dominar. É uma das faixas mais espessas, que melhor faz sentir a consistência rochosa que permeia o álbum. O cenário piora quando, na música de Isabel Nogueira e Luciano Zanatta, as câmaras magmáticas se tornam inferno. Vozes fantasmagóricas agonizam e dão uma amostra mais concreta de como são os tais lamentos do submundo, e não nos assustamos, mas antes trocamos com essas vozes impressões e estratégias que flutuam no tempo e espaço: um intercâmbio de experiências com (outras) almas torturadas na tentativa de escape para uma geografia melhor. Uma reflexão profunda que pode nos servir de combustível e nos dar discernimento para uma escolha de ferramentas. Em "Ruído Intravenoso", de Maximiliano Chami, uma rota de fuga: inicia-se a ação. A percussão forte e o ritmo marcado da faixa indicam um relevo acidentado e revelam que a paisagem começa a sofrer modificações em função dos nossos movimentos. Avalanches, deslizamentos de terra, pedras quebrando e rolando e placas tectônicas colidindo. Trouxemos as perturbações da faixa anterior do inferno para a superfície e vemos que a atividade sísmica origina formações montanhosas maciças e espessas. São as convulsões geológicas do pensamento a que se referiu Proust. Recursos e pessoas são mobilizadas para a missão. Fragmentos de falas e tentativas de comunicação, em sinal e em ruído, mostram que essa faixa concentra o clímax confrontacional do projeto. Após a ação, um reagrupamento humano em que tudo é burburinho: missões de resgate, barulhos, um pós-catástrofe. Poeira, helicópteros, walkie-talkies e jalecos. Algo na realidade se alterou de modo permanente. Ainda atordoados e tentando nos adaptar à nova organização, Flávia Goa & Dibuk confirmam que o feito empreendido se tratou de uma fuga. Com orgulho olhamos para trás e percebemos a grandeza dessas modificações, enquanto ainda nos reacomodamos após o choque. Sobrou a devastação, mas o ar agora é diferente. Em "Fornicatrices Nocturnae", de André de Castro & Leandro de Los Santos, a saída do parque fantasma se consolida com a distorção e desintegração completa do local. O deboche anterior das imagens de palhaços que riam de nosso destino determinista se volta contra eles até que todo o local se derreta sobre si mesmo e os bonecos se tornem somente cera. Agora que somos criaturas já de um outro tipo, que não sabemos qual, esboçamos uma celebração em nossa nova e estranha linguagem, transposta para a música por um saxofone caótico. O projeto se encerra com "Enigmas e Talismãs", de Solavanco da Primavera, uma sentença de morte para a terra opressora que acabamos de abandonar. Assim como na primeira faixa uma voz humana nos recebeu, dessa vez somos levados ao portal de saída, enquanto uma leitura de Universo em Desencanto dá sentido ao que foi vivido: "A alegria será deslumbrante, a emoção e a satisfação serão enormes. Isto é um insignificante comentário da vida e do porquê da vida; do que é a vida atual e do que será a vida futura". Que possamos confiar sempre na nossa ação e nas perturbações tectônicas para relegar a se corroerem em sua própria ruína os males e sentenças de morte da vida atual, e para sabermos onde construir a vida futura. 

" (...) That is why, I suppose,
    The best and worst never stayed here long but sought
Immoderate soils where the beauty was not so external,
    The light less public and the meaning of life
Something more than a mad camp. 'Come!' cried the granite wastes,
    "How evasive is your humour, how accidental
Your kindest kiss, how permanent is death." (Saints-to-be
    Slipped away sighing.) "Come!" purred the clays and gravels,
"On our plains there is room for armies to drill; rivers
    Wait to be tamed and slaves to construct you a tomb
In the grand manner: soft as the earth is mankind and both
    Need to be altered." (Intendant Caesars rose and
Left, slamming the door.) But the really reckless were fetched
    By an older colder voice, the oceanic whisper:
"I am the solitude that asks and promises nothing;
    That is how I shall set you free. There is no love;
There are only the various envies, all of them sad."

    They were right, my dear, all those voices were right
And still are; this land is not the sweet home that it looks,
    Nor its peace the historical calm of a site
Where something was settled once and for all: A backward
    And dilapidated province, connected
To the big busy world by a tunnel, with a certain
    Seedy appeal, is that all it is now? Not quite:
It has a worldly duty which in spite of itself
    It does not neglect, but calls into question
All the Great Powers assume; it disturbs our rights. The poet,
    Admired for his earnest habit of calling
The sun the sun, his mind Puzzle, is made uneasy
    By these marble statues which so obviously doubt
His antimythological myth; and these gamins,
    Pursuing the scientist down the tiled colonnade
With such lively offers, rebuke his concern for Nature's
    Remotest aspects: I, too, am reproached, for what
And how much you know. Not to lose time, not to get caught,
    Not to be left behind, not, please! to resemble
The beasts who repeat themselves, or a thing like water
    Or stone whose conduct can be predicted, these
Are our Common Prayer, whose greatest comfort is music
    Which can be made anywhere, is invisible,
And does not smell. In so far as we have to look forward
    To death as a fact, no doubt we are right: But if
Sins can be forgiven, if bodies rise from the dead,
    These modifications of matter into
Innocent athletes and gesticulating fountains,
    Made solely for pleasure, make a further point:
The blessed will not care what angle they are regarded from,
    Having nothing to hide. Dear, I know nothing of
Either, but when I try to imagine a faultless love
    Or the life to come, what I hear is the murmur
Of underground streams, what I see is a limestone landscape."

- W. H. Auden, "In Praise of Limestone"

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