Sobre formas de estar no mundo e o uso da força
Recentemente lesionei as costas na minha primeira semana tentando praticar o esporte musculação. Chamo de esporte porque seus entusiastas se referem às sessões como "treinos". Estava puxando uma máquina que emula um par de remos e senti uma dor maior que a de costume (seja a física, de estar pateticamente tentando submeter meus músculos a uma força logo acima do que podem suportar - que parece que é toda a ideia da prática -, seja a espiritual causada por estar num ambiente fechado e com um ou outro elemento de direitismo). Minhas costas, um pouco mais para perto do ombro esquerdo, doeram e dessa vez eu não voltei ao normal depois de um ou dois dias, com a prometida regeneração dos músculos. Mais dias foram se passando e a coisa se alastrou, tornando inadiável a visita a um ortopedista. Lá, foi-me receitado um analgésico sublingual, o que pareceu divertido (é sempre uma experiência lúdica esperar um remédio dissolver debaixo da língua). Ele funcionou perfeitamente durante os cinco dias prescritos, mas tão logo se encerrou o tratamento a dor voltou como se nunca tivesse saído. Como plano B, porque o médico previu o cenário possível em que o analgésico não me curava, estava a fisioterapia.
Uma verdade que esqueço muito facilmente é que algumas coisas são terapia. Não no sentido de fazer bem, mas de demandarem alguma paciência, de terem eficácia diluída. A ideia de que eu tinha um tipo de inflamação e ela não seria removida instantaneamente com um mega aparelho ou em poucos dias com um remédio forte me ofendeu muito. Uma mente ensinada por um mundo chato, karlpopperiano, tecnocientífico e de causa e efeito se recusa a aceitar que um tratamento dure semanas, se dilua em dez sessões e se baseie em treino, repetição e melhora gradual. Mas a realidade é assim, um pouco mais suja do que querem que a gente acredite, com elementos mais difíceis de se isolar. E aliás essa é a nossa salvação: se existirem brechas para vivermos minimamente algum humanismo, deve ser nessas intrusões de realidade que nos confrontam. Embora seja um contratempo, a lentidão do processo terapêutico abre a possibilidade de que nossa interação com a cura não seja de consumo, mas de um relacionamento. Um processo de cura, que se desenvolve e que tem acontecimentos. É por isso que, apesar de esquecer com frequência, acho da mais alta importância ser relembrado disso de tempos em tempos. Não sou da área da saúde, mas imagino que essa coisa aí de remédio pra todas as situações seja algo meio caído mesmo. Um "punitivismo fármaco", por assim dizer. Um vídeo que apareceu no meu feed do Youtube há alguns meses, e que deve ter aparecido no de todos vocês, é o de um ex-neurocirurgião que "largou tudo" e foi viver na natureza. Ele explica que percebeu, em sua carreira, que aquilo que melhor prediz se uma pessoa vai se curar não é ele ter realizado nela uma intervenção cirúrgica na coluna, mas os elementos acessórios que compõem a qualidade de vida. Tendo dado a volta por toda essa cadeia de pensamento consegui finalmente justificar para mim mesmo o corajoso ato de seguir a prescrição simples de um médico e iniciar a fisioterapia.
Os jovens de hoje, segundo consta, iniciam suas mensagens no celular com letras minúsculas como técnica de flerte. Diz-se que quem usa maiúsculas no começo das frases é um "mato não capinado": a pessoa não se relacionou ainda com alguém que lhe adestrou a performar certa estética tida como favorável ao desenvolvimento amoroso. Mas eu nunca desisto de tentar enxergar o mundo de uma forma que não seja cínica, e insisto que só uma ínfima parte das pessoas que usam letra minúscula devem fazê-lo por algum motivo desses. No meu caso, lembro perfeitamente que, ainda na escola, uma das primeiras coisas que fiz nas duas vezes que troquei de celular foi configurar o teclado para enviar por padrão as mensagens com letra minúscula. Era um hábito que me acompanhava desde a pré-adolescência, no MSN, e já era um pensamento consciente, quer dizer, eu pensava de modo explícito sobre a linguagem subjacente às letras maiúsculas ou minúsculas. Por essa mania inconveniente que já se manifestava ali de pensar sobre as coisas mais do que elas exigem e transcender qualquer conclusão para uma realidade mais geral (mania essa que é nossa prisão e nossa liberdade), eu via naquela decisão uma oportunidade de expressar todo o meu ser. Hoje percebo que o que se passava ali, sem que eu conseguisse ainda elaborar, era algum pensamento nas seguintes linhas: como é que eu ia usar uma escrita espaçosa, impositiva, se eu não era uma pessoa dominante? Naquele tempo do MSN em que meus amigos começavam a se levar muito a sério, e passavam a descobrir sua vida desejante e levá-la muito a sério, eu não conseguia me ver e ser visto a sério de jeito nenhum. A escrita maiúscula era absolutamente incompatível com meu desempenho na educação física e com o desenvolvimento relativo do meu corpo. Isso pode, sim, ser lido como algum esboço de resistência a uma socialização masculina imposta, mas acho mesmo que, em vez de uma questão de gênero, era muito antes um pedido de socorro do meu lado infantil. Quando me penso a partir de qualquer desvio de norma, qualquer ruptura de identidade, o sentimento mais imediato é sempre o de uma infantilidade ignorada, que foi forçada a se levar a sério.
O que vi na fisioterapia foi um resgate da infantilidade, no melhor dos sentidos. Esperava entrar em um pequeno consultório qualquer, branco e impessoal, em que só houvesse eu e o fisioterapeuta na sala. Mas ao descer para o subsolo da clínica me deparei com um parque de diversões. Vários pacientes, cada um acompanhado por um profissional, sem paredes entre si, num espaço amplo e em formato quadrangular com todos voltados para o centro, podendo se entreolhar. Cada paciente executava um exercício. Me sentaram numa cadeira e colocaram perto das minhas costas um emissor de raios infravermelhos (eu não acreditava em infravermelhos). Uma senhora se esforçava para levantar repetidas vezes uma barra cilíndrica sem pesos. Um fisioterapeuta massageava o pé de um homem com uma espécie de roll-on, aplicando um gel relaxante com todo o cuidado do mundo. Eu observava tudo sem mexer no celular, maravilhado com cada detalhe. Me atentei para a música: era música ambiente! Um piano delicado meio jazzy se escutava entre as conversas esparsas e baixinhas como numa biblioteca. Um print do meu celular no dia dessa primeira sessão, quando usei o reconhecimento de música do Google, mostra que o artista era "Tom Media", aparentemente um perfil genérico e talvez inumano dedicado a compilar playlists que tocam muzak. Fiquei feliz com a constatação de que mais uma vez um acontecimento corriqueiro na minha vida me lança em uma navegação introspectiva e acabo desembocando na música ambiente. Essa espécie de sorriso do mundo para mim me fez ter a epifania inteira de uma só vez, e só agora nesse texto começo a desvendar seus elementos e racionalizar o que senti. Fato é que caiu como uma luva que eu tivesse um blog relacionado ao tema.
Diferente da hostilidade e adulteza do ambiente de musculação, a fisioterapia é um espaço acolhedor. No primeiro celebra-se a norma, e toda aquela energia vital, por meio dos músculos, é empregada com um único objetivo homogeneizante e basicamente perverso. Como a letra maiúscula, a hipertrofia é, por essência, um movimento de expansividade, uma espécie de violência. Na fisioterapia, por outro lado, prevalece a luta individual de cada corpo. Toda pequena conquista é comemorada pelo que representa dentro da narrativa daquele corpo, e o que me remeteu à infância ali (mesmo com a ironia de ser um público em média mais velho) foi que em tudo eu vi pessoas de alguma maneira engatinhando, reaprendendo a andar.
Além dos infravermelhos, roll-ons de pé e barras sem peso, me chamou atenção a massagem. Manual, aplicada por um ser humano. Eu não diria que chegou a me lembrar um spa porque associo os spas a uma histeria de classe, muito mais próximos em essência à musculação do que ao que eu estava vendo ali. Entendo o spa como uma exteriorização de excessos, consequência (e remédio totalmente ineficaz) de uma vida superlativa. Uma youtuber de que gosto muito, Liliane Prata, infelizmente apagou alguns vídeos antigos que fazia, dentre eles um em que ela disse algo genial sobre o desequilíbrio causado em nossa vida pelo modelo vigente de trabalho. A partir do contraste entre os dias de semana, marcados pelo absoluto sufocamento pela rotina, e fins de semana marcados pelo exagero, como se fosse possível, por meio deles, redimir e compensar o estresse vivido, a perda irreparável que isso traz, ela comparou esse desequilíbrio com o hábito de acrescentar sal na comida: o ato de salgar algo que, por suas propriedades naturais, já é salgado é uma forma de excesso, tal qual um fim de semana de sobrecompensação. Um modelo que fosse sempre equilibrado não exigiria nenhum momento de sobrecompensação. Não tenho dúvidas de que o spa está muito mais perto de um fim de semana de abuso de álcool do que de um relaxamento de fato. O excesso, aqui, não tem a ver com o exagero artístico que elogiei no texto 4, mas uma extravagância industrial. A massagem que vi na fisioterapia parecia estar livre de tais fantasias grandiloquentes.
Embora a imagem do parque de diversões seja injusta com quem sofre na fisioterapia, me lembrei daquelas academias da terceira idade que começaram a colocar nas praças, e na minha infância isso foi a maior novidade. As fronteiras entre a luta pela vida, de um corpo idoso, e a anarquia lúdica de um grupo de crianças que achavam que aquilo era brinquedo, na minha mente se entrelaçavam, e uma pessoa idosa poderia talvez se divertir naqueles aparelhos enquanto via também crianças extraírem daquilo algum prazer. Era uma chance ainda de se afastar dos brinquedos tradicionais no espaço das crianças, onde se devia enfrentar toda aquela socialização difícil em que sempre ganhavam o direito ao brinquedo as crianças mais imponentes. A área da terceira idade, se não exatamente um diagnóstico de "idoso crônico", era já uma identificação prematura com um senso de afastamento, uma pausa para respiro da selvageria da sociabilidade, uma introdução espiritual à área de fumantes.
Não é que toda motivação para a entrada na musculação seja perversa. Sei que grande parcela das pessoas busca uma melhor qualidade de vida. Os meus motivos, embora não esnobassem ganhos secundários que poderiam vir daquela busca perversa, eram principalmente ter acesso a esse estoque de serotonina que, dizem, está aí disponível, no mundo, como uma reserva de minerais a serem extraídos. Eu pensei: então isso aí é para mim também! E tentei me blindar do ambiente externo o máximo possível, como se levando meu brinquedo da terceira idade bem para o meio da área das outras crianças. Tentei tornar a experiência o mais meditativa possível, o que se provou ser a exata causa da minha ruína. É muito provável que minha lesão tenha vindo de um movimento executado errado, sendo que só me devotei a uma boa execução na primeira ida, quando busquei alguém ali para montar minha série e me ensinar os movimentos. Nunca mais precisei incomodar novamente, o caminho livre para que minha lesão se instalasse e para que os exercícios futuros fossem totalmente contemplativos, dependentes de nada mais que meus fones de ouvido e o Aphex Twin que passava por eles.
A essa altura já deve estar claro que o que quero dizer é que a "minha música" é a música ambiente e o "meu esporte" é a fisioterapia, não a musculação. Eu só não digo isso porque me pareceria desrespeitoso tratar a fisioterapia como um esporte, quando lá mesmo eles chamam os praticantes de pacientes. Quando um termina seu tratamento (eu presenciei), o fisioterapeuta diz: "melhoras, espero que não precise voltar!". E no fim se trata disso. Ainda que eu me identifique de certa forma com "ser um paciente" na vida, de forma alguma incentivo que você, leitor do blog, não tenha saúde. A redação do blog quer você saudável, com a melhor das qualidades de vida. Trato apenas de um ser-paciente metafórico, recreativo, uma fragilidade identitária, um deslocamento incrustado no eu. Acima de tudo, porque é impossível não ser assim. A dominância performada nos ambientes de musculação não é mais que um grande teatro de ocultação de inadequações fundamentais, do lado "paciente" de seus praticantes (ao menos aqueles responsáveis por fazer do ambiente aquilo que ele é; evidentemente o praticante "plebeu" pode se eximir dessa crítica...). A seleção de músicas que se ouve é para todos, em maior ou menor grau, uma expressão de personalidade. E, contraintuitivamente, a música ambiente talvez seja um manifesto radical até um pouco demais. Como uma das maiores subversões possíveis. Não pelo seu barulho, não por ser uma escolha violenta, mas por se opor a uma normalidade que é barulhenta e violenta, expansiva e hipertrófica. A música ambiente é música de quem olha pela janela. É mais um olhar pela janela do que ser o mundo acontecendo fora da janela. É mais um blog de música do que a música em si. E falo isso sem nenhuma amargura ou frustração. Frequentemente o olhar pela janela se torna o próprio mundo acontecendo.
É claro que a interseção da música ambiente com noise e eletrônica está muito, muito longe de ser nula, e que o gênero está muito, muito longe de ser definido pelas músicas calmas. Mas quando você dá um passo à frente e levanta sua bandeira, é das músicas mais contemplativas que você vai estar ao lado nas trincheiras; são elas que você vai precisar defender dos ataques. Obras muito variadas e estimulantes estarão sendo representadas no pacote, mas no fim das contas é a música para aeroportos que vai te dar mais trabalho de convencimento. As outras ainda se assemelham em estrutura, volume ou quantidade de picos sonoros às músicas "hegemônicas".
A solução para o meu dilema de encontrar minha personalidade em algum esporte virá da dialética. E falo isso de uma das formas mais literais que já se usou o termo. Minha solução vem literalmente da palavra "meio-termo". Eu me lembro vividamente do aniversário de um amigo de escola, no saudoso kart do Extra da Tijuca. Foi o dia em que aprendi a palavra "meio-termo", e lembro disso porque parecia uma palavra de adulto, e toda vez que eu aprendia uma palavra de adulto nova eu me sentia mais inteligente. Lembro disso também porque a ocasião em si me marcou (quase de forma traumática). Eu não tinha altura ainda para ir no kart de adulto como todos os outros daquele aniversário tinham, por pouco ou por muito. Eu estava "logo abaixo do limite". Foi quando ouvi a mãe do meu amigo conversando com um funcionário, no que parecia uma sentença sobre a minha existência futura - e foi -, uma assombração que nunca me deixou. Ela olhou para ele com um olhar grave e disse: "ele é um meio-termo". Isso porque existia também um kart infantil, uma pista ridícula que era basicamente a letra "O" um pouco alongadinha. Não tinha desníveis, não tinha aquela curva inclinada maneira da pista de adulto que lembrava a de Radiator Springs. Eles sabiam que eu era muito grande para a pista de criança, ou que ia morrer de tédio. Simplesmente não ia poder participar. Acho que nada condensa melhor o meu limbo entre uma criança hiperconsciente e um adulto inadequado, ou um adulto que se recusa a usar letras maiúsculas, do que esse evento. Uma coisa meio "mestre de mundo nenhum". No final acharam pra mim uma palmilha e decidiram que eu poderia correr na pista de adulto com essa ajuda (fiquei em último por uma larga distância).
O meio-termo entre não poder chamar fisioterapia de esporte e acreditar que a musculação viola direitos humanos é que vou adotar pilates como o meu esporte. Pelas conversas que tive, ele conserva essas propriedades da fisioterapia que elogiei, pode ser praticado por tempo indeterminado, não sendo exatamente um tratamento e não me desejando que eu não volte, e não me obriga a usar letras maiúsculas. Resgatando outro monumento da cidade, é como a extinta Terra Encantada, pelas bandas da Barra. Nunca tive idade para subir na montanha russa grande, a montanha russa pequena não tinha graça alguma, mas a Terra Encantada, essa sim, tinha um lugar para mim: a montanha russa do meio. Lembro que ela tinha um aspecto alaranjado, é uma das minhas poucas memórias dela. Não tinha loops, mas já tinha umas quedas bem interessantes, e às vezes emplacava uma boa velocidade. Ali eu fiz meu nome, como vou fazer em breve no pilates, ao fim das minhas sessões de fisio. Esta será minha escolha política.

Cara
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