quarta-feira, 30 de julho de 2025

#9 - Kitaro: a versão musical dos romances de jornaleiro

Discos rejeitados lembram o "multiverso" das séries de livros Sabrina, Júlia e Bianca

Eu posso apostar que a cada feira de vinil que acontece nesta cidade se repete ao menos uma vez a seguinte cena: um garotão chega em casa, se sentindo todo "esperto" pelos garimpos. Ele começa a remover das sacolas um por um, começando pelos mais óbvios. Guardado no canto de sua mente, deixado para abrir por último, está a cereja do bolo: aquele LP do Kitaro que ele nem sabia que existia, e que de forma inexplicável conseguiu levar por 30 reais. Como pode o dono do estande ter sido burro a ponto de deixar essa preciosidade na caixa das maiores liquidações? Soberbo, ele se apressa para ostentar a história perante seus amigos, e para isso começa a coletar dados. "Vou mostrar quanto estaria valendo na internet". Abre o Google e os cinco primeiros resultados são discos do Kitaro custando 30 reais. Novos, ainda. Com uma pitada de sadismo, o sexto resultado se apresenta logo ali embaixo, custando 15. Mas como diz a juventude, "não posso interferir em um momento canônico". O azarado descobre que por ali passou o carimbo da gravadora Polydor, histórica financiadora dos excedentes de estoque de vinil, e que na década de 80 as prensagens nacionais de Kitaro saíram como água. Não só as prensagens, aliás: a própria discografia de Masanori Takahashi, apelidado desde a escola a partir do anime GeGeGe no Kitarō, é um pouco desfavorável a qualquer ideia de escassez que pudesse ajudar a aproximar suas obras de artigos de luxo. Por sorte, o presente blog despreza esse tratamento, e desde que no texto 1 defendemos a música como algo potencialmente utilitário me parece honroso manter a tradição de resistir à elitização da arte. Com mais de 100 discos entre projetos solo, colaborativos e trilhas sonoras, é fácil entender a razão de nosso colega ter visto na feira um disco inédito, com todo o aspecto de um achado, mas lamentavelmente o peso da descoberta se reduz um pouco. Vários álbuns, para além de tudo, ainda viveram a saga fundamentalmente japonesa de ter nome, título e capa alterados em edições alternativas. Mas, ao amigo, um consolo: se as suas asas de uma grande escavação no sentido mercadológico foram cortadas, o sentido da matéria, que é o que mais importa, indica que 30 reais são incompatíveis com a vasta riqueza contida nos LPs do artista japonês. 

A época new age foi culturalmente fértil de uma forma que não se via desde o Renascimento. Os movimentos se equiparam quando temos em mente a quase inédita confluência de saberes antes descentralizados: ciências ocultas, ufologia, diálogo entre doutrinas religiosas sem fronteiras, astrologia, medicina reiki, cura com cristais, raves, movimento hippie. Mas se, como movimento, ele teve seu auge na década de 70, o que se chama hoje, de modo reducionista, de música new age, intimamente ligada a um som eletrônico mais progressivo, só floresceu a partir dos anos 80. As primeiras músicas do "gênero" não eram orientais, ainda que bebessem tematicamente da influência asiática sobre o ocidente durante esse período de boom. Foi necessário que Kitaro ajudasse a popularizar a música new age no ocidente, tendo sido um de seus pioneiros, mas ele próprio não tendo simplesmente trazido sua bagagem técnica do oriente e aplicado aqui. Foi bem o contrário: aprendeu com Klaus Schulze, do Tangerine Dream, a usar os sintetizadores, quando o alemão produziu para o grupo de que Kitaro então participava, Far East Family Band. O que esse recém-adquirido repertório técnico encontrou em Kitaro, agora sim, foi um terreno fértil onde pudesse se mesclar com uma experiência de vida que já existia ali.


Minha tentativa mais verdadeira de descrever a música de Kitaro seria dizer que, por baixo da superfície repleta de adereços cósmicos, ela é "yearning" puro. Mas "anseio" não consegue traduzir isso exatamente, consegue? Quando analisamos seus discos, especialmente os de sua fase mais espiritual - qualquer um desses que você encontraria num sebo: Towards the West, Silk Road, Oasis, Ki, Astral Voyage - percebemos que em sua essência existe nitidamente uma busca. Arcos que criam melodias ascendentes e descendentes, notas prolongadas que parecem gemidos existenciais. Os deslumbrantes sintetizadores - análogicos, segundo o artista, para infundir maior quantidade de vida - se combinam com flautas e criam uma atmosfera luxuriosa, com sonoridades sibilantes siderais. Por mais introspectiva que sua música soe, a espacialidade dos discos projeta a atitude meditativa também em direção ao universo. Não só pela temática e identidade visual dos discos, mas pela forma mesma da instrumentação. A música de Kitaro flerta com ideias de infinito, e consegue nos transmitir lampejos desse conceito com arcos melódicos que parecem sempre em expansão, em expansão. E que, movimentando-se, buscam algo. 

"Os sintetizadores me ajudam a evocar um oceano, uma costa no inverno, uma praia no verão, uma cena inteira", diz Masanori. Tudo faz sentido quando se leva em conta que ele é xintoísta - um pedaço de verdade que o ocidente tentou replicar mas que se pode encontrar em versão autêntica em todo o estilo de vida do compositor. "É como um modo de viver. Não é exatamente uma religião, embora seja classificado como tal. (...) No xintoísmo acreditamos que os deuses vivem na natureza, nas árvores, nos oceanos e tudo mais. Eles são invisíveis, mas talvez se fecharmos os olhos e fizermos uma imagem, a gente consiga sentir algo. Esse é um dos presentes dos deuses, da natureza". Os sintetizadores são a busca de Kitaro por criar essas imagens.

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Tanto pela presença nos sebos mais improváveis como pela imensa produtividade nos lançamentos, passando ainda por terem na apresentação física projetos estéticos não muito diferentes, a obra de Kitaro me remete aos preciosos romances de banca. Uma vez descoberta uma fórmula, o compositor japonês dedicou-se a replicá-la, não em termos da alma dos discos, que sinto que seguiu passando por um crivo artístico verdadeiro, mas certamente dos artifícios técnicos e da estrutura. Os títulos dos álbuns também tinham algo de genérico: "Silver Cloud", "An Ancient Journey", "Astral Voyage" e "Peace on Earth" tentam transmitir um vago senso de aventura. Os inovadores romances de banca faziam algo parecido, usando de artifícios formulaicos para criar a mais variada gama de narrativas dentro das linhas específicas de Sabrina, Júlia e Bianca. Note-se: os livros não eram escritos por uma mesma autora, e sequer as personagens se chamavam Sabrina, Júlia e Bianca. Isso num tempo em que "cinematic universe" ainda não era moda! Para contextualizar, vou parafrasear quase inteiramente o relato de José Antônio, dono do blog primo "Livros e Opinião".

"As protagonistas da série Sabrina eram mais atuais e o cenário mais moderno. As histórias mostravam conflitos do dia-a-dia gerados por mal-entendidos e ciúme, sempre coroados com um final feliz. (...) A série Bianca seguia as mesmas características apostando em histórias que seguiam a temática onde as protagonistas eram românticas e sonhadoras; a única diferença estava relacionada ao cenário, quase sempre antigo. Os relacionamentos amorosos dos personagens eram descritos de maneira bem sutil e poética. Já os romances do segmento Júlia mandavam ver. Os enredos eram picantes na maioria das vezes explorando romances proibidos. As personagens eram mulheres maduras, decididas e sexy.


"É importante frisar que mesmo sendo um pouco mais liberais do que Sabrina e Bianca, os enredos de Julia não fugiam do estilo recatado da série de livros de banca. Os trechos envolvendo cenas de sexo eram descritos e jamais chamavam os órgãos genitais pelo nome biológico, se referindo ao órgão feminino como a ― “feminilidade” ou ao “triângulo cheio de pelos”.

"As tramas eram muito variadas, como a empregada que apaixonava pelo patrão, a mulher pobre que amava secretamente o patrão, a viúva que desejava o amor de seu humilde empregado, etc.

"As autoras das tramas era o menos importava no esquema. Quer uma prova? Então lá vai. Será que você que foi leitora assídua das “Sabrinas”, “Julias’ e “Biancas” se recorda de nomes como Anne Hampson, Sara Craven, Margery Hilton, Violet Winspear e outras? Se você disser que conhece uma dessas escritoras; com certeza estará mentindo. Quando uma escritora era convidada a escrever um enredo para qualquer um dos três selos da Nova Cultural, ela tinha de seguir uma estrutura narrativa única e que pouco ou quase nada mudava. Uma verdadeira cartilha. Ah! Eram contratadas apenas escritoras desconhecidas da grande massa de leitor. Muitas delas sem nenhuma bibliografia na Net."

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"Yes, many loved before us
I know that we are not new
In city and in forest
They smiled like me and you"
- Leonard Cohen, "Hey, That's No Way to Say Goodbye"

Uma coisa sobre o amor, pela qual já passei e acredito que seja parte do processo de formação de qualquer amor amadurecido, é o necessário deslocamento do particular para o universal. Um casal de pombinhos apaixonados percebe, de forma legítima: "Como é que isso aqui que estamos vivendo, que é tão único, pode compartilhar palavras em comum com vivências de outras pessoas? Como pode a linguagem ousar dizer que sabe explicar precisamente o que é isso aqui? Como ela pode sequer pensar que tem acesso a isso?". Tudo parece clichê. Entra-se então na fase de procurar vocativos, angariar peculiaridades, piadas internas, tentativas de singularizar e identificar ao máximo a experiência do casal. Mas passado esse afã, o que sobra é uma serenidade adquirida: pensando bem, a palavra "amor" serve bem para explicar isso. O vocativo básico deixa de incomodar, e o sentimento de humanidade-comum toma conta. Os fenomenólogos dirão que essa é a passagem do Eu para o Mundo. Kitaro representará isso em seus álbuns, que sempre deslocam o ouvinte de seu ponto inicial em direção a alguma jornada externa. Afinal, se somos um com o universo, não é necessário teimar por uma individuação das experiências. E os romances Sabrina, Júlia e Bianca farão o mesmo, em dois sentidos. O primeiro, na escolha editorial de manter narrativas simples e universais. Fazendo isso, exalta-se a dádiva do amor anônimo e cotidiano, combatendo exatamente o tal desejo de diferenciação. Os livros têm sucesso na bela tarefa de capturar, no que é comum a todos, a intensidade daquilo que se experimenta de modo particular. O segundo, na escolha de rotacionar as escritoras, sem que as histórias pertencessem a nenhuma delas. Cultivou-se um espírito de colaboração que fez Sabrina, Júlia e Bianca tomarem vida própria, fazendo parte de algo maior. Nisso me vejo obrigado a mandar um caloroso abraço ao amigo Rogério, que muitos anos atrás havia me dito que o que havia de mais interessante sendo produzido na literatura estava no Wattpad, e só depois de todo esse tempo fui entender. O tempo tem seus próprios caminhos.

Ouvir um LP do Kitaro pela primeira vez é único, isso é inegável. Quanto mais obscuro for o álbum e maior aspecto de garimpo tiver tido a compra, provavelmente mais místico será o ritual. Depois de passear por alguns discos a mais, deve começar a crescer um senso de repetição, de já ter escutado um instrumento ou uma construção antes. Essa foi uma escolha que Kitaro precisou fazer em nome do volume de publicações, e é um dilema artístico válido. Vale lembrar que, antes de tudo, a arte é um ofício, e a música ambiente tem como característica a abertura para uma experiência que não se esgota no processo de escuta. A oposição, portanto, a uma ideia de objeto artístico fechado em si, finalizado e bem acabado, que não interage com a escuta, respalda uma possível decisão de não restringir o acervo próprio a alguns poucos discos, padronizados mundialmente, recipientes de uma admiração sagrada. Quando, então, prestamos atenção à obra de Kitaro, vemos seu movimento de intencionalidade em direção ao mundo, que é na verdade uma forma de constatar que a separação nunca existiu. Dotados de uma sensação de pertencimento, nós e o garimpeiro de vinis frustrado percebemos que nem todo sentimento precisa ser único para ter valor.

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