Público não esperava os elementos de ambient e desrespeitou apresentação; se serve de algo, falatório transformou pista num interessante bar de escuta
Era aproximadamente meia noite e meia, as substâncias consumidas nos encontros pré-festa perto de chegar ao auge dos efeitos sobre as pessoas. A construção da onda coletiva, em parte, havia sido feita por Eli Wewentxu, que meia hora antes tentou conduzir a sensibilidade da pista ao estado desejado. Num horário em que as festas tentam surfar no pico de adrenalina colocando DJs de frequências mais altas, apostou-se em seu encantador violino conectado a um processador digital que distorcia seus sons e esboçava uma atmosfera. Agora Nicolás Jaar tocava, em frente à icônica parede de pedras (!) da Sacadura 154, as primeiras músicas de Archivos de Radio Piedras separadas para a noite. Talvez sem o público saber que se trata de um dos projetos mais importantes da história recente da música, o burburinho causado por uma massa de conversas ainda era muito, muito imponente, como também tinha sido durante a apresentação de Eli. Estava em primeiro plano absoluto. Alguns passos à minha frente um rapaz de camisa de malha da Foxton perguntou a um amigo: "Mano, cadê os drops?".
Note-se: a Gop Tun é uma das melhores festas da eletrônica underground no Brasil, e provavelmente fiquei perto do amigo da Foxton por azar, porque o público não costuma ser esse. Mesmo assim, um set downtempo talvez seja pedir demais. Mas se eu poderia pensar que minhas impressões foram consequência somente da minha vizinhança, o ruído de conversa geral, propagado por toda a extensão da pista, eliminava qualquer dúvida de que não se tratava de um efeito de vizinhança. Nos dias anteriores ao evento, pelo volume de publicações buscando contextualizar a obra de Jaar e como se podia esperar algo "diferente", quase consegui sentir a preocupação dos organizadores - que não foi infundada, evidentemente. É importante enaltecer com muita ênfase a iniciativa da Gop Tun, porque não se sabe se, sem o convite deles, teríamos tido o privilégio de presenciar no Brasil o que presenciamos. Mas talvez em parte pelas férias universitárias, ou qualquer outra confluência de fatores, o evento deve ter sido amplamente divulgado como o "rolê de quinta", e a reputação da festa provavelmente contribuiu para a expectativa de que aquela noite entregasse o pacote típico da música dançante.
Foi com esse pensamento que a maior parte das pessoas se deslocou na última quinta-feira, dia 31, para a Sacadura, pista que já recebeu Carly Rae Jepsen, Mitski e choppadas de cursos de Direito. Atrás de uma bandeira do povo originário Mapuche estendida sobre a mesa (povo do qual Eli Wewentxu faz parte), Nicolás Jaar começou o set com um discurso que se esforçou para ler em português, chamando atenção para o abuso de décadas do governo chileno em relação às comunidades indígenas do país. Com uma Constituição que é a mesma desde os tempos de Pinochet, o Chile é o único país da América Latina que não reconhece seus povos originários. Uma tentativa de reformar a Constituição para instituir um Estado plurinacional e aumentar a representação das pessoas indígenas com cotas legislativas foi rejeitada em 2022 por maioria em plebiscito, e mesmo uma tentativa mais conservadora em 2023 foi descartada. Enquanto isso, a Lei Antiterrorismo continua em vigor e serve de subterfúgio para o Estado chileno promover o assassinato sistêmico de indígenas como repressão política - Salinas Hasbún, homenageado no show, está desaparecido desde 2022. Jaar também alertou para a preservação ambiental, cuja importância se pode ver na exploração promovida por companhias de mineração no país. Esses foram os momentos mais aplaudidos pela plateia. A causa palestina, que costuma ser a maior bandeira de Nicolás (até por causa de sua ascendência, de onde veio o sobrenome Jaar), não foi o foco, mas por uma escolha conceitual das apresentações de Radio Piedras, que resgatam um senso de identidade latina. Mesmo assim, a defesa da Palestina é tão central para ele que se mostra indissociável de sua obra, permeando integralmente os álbuns. Então foi natural que na música Rio de las tumbas, quando chegou a letra "y te hablo de Palestina", o público desse um novo grito. Essas foram as celebrações por motivos políticos. As demais vieram em todo e qualquer momento em que a música se aproximou da ideia pura de eletrônica. Trechos com batidas mais agressivas ressuscitavam a pista. Drops eram comemorados como se fossem gols, ou como aquele amigo que você botou para ver um ótimo filme do Michael Mann, mas que só se pronunciava nas cenas de tiro: "É isso! Era só ter mais disso!". Nesses momentos de mensagens políticas e beats que agradavam os mais bleep-bloop-heads, a atenção dos ouvintes conseguiu ser plenamente capturada. Em todos os outros, o cenário era de falatório total.
Acontece que ouvir música ambiente sem conversas em volta seria como ler um livro sem anotar em suas margens. É possível? Com certeza. Seria uma experiência mais pura? Sim, provavelmente. Mas desde Brian Eno, o acontecimento musical foi deslocado do ato de fazer música para o de escutar, colocando o foco totalmente no ouvinte. A música ambiente é o ápice da morte do autor, e em nenhum outro gênero o ouvinte se torna tão protagonista e se apossa tanto da experiência. Basta ver John Cage, que radicalizou a apresentação musical enquanto Fenômeno. Isto não é uma defesa do público da festa, que foi inegavelmente desrespeitoso. É uma constatação de que a música ambiente, por definição, sobrevive às condições mais adversas que se possa colocar. Aqui exponho de modo desnecessário uma história de origem minha: ainda na idade formativa, querendo me sentir visto pelo meus amigos em função do meu gosto musical, um deles desdenhou do que eu estava ouvindo chamando de "música de elevador" (que, por sinal, definitivamente não era). Eu não sabia ali, mas aquilo faria se abrir para mim um mundo. Descobrir que um termo pretensamente pejorativo existe como conceito e ainda reúne uma comunidade em seu entorno tem um poder sem precedentes de reelaborar a experiência. Todos que em algum momento tiveram uma relação com a música que de qualquer mínima maneira envolvesse identidade devem também sentir certo prazer na desaprovação de terceiros. Então por mais que a mensagem de Jaar (que, por não ser da escola mais purista do ambient, não deve ter uma visão tão romântica da desatenção) possa ter se prejudicado com o desdém da plateia, eu não conseguia parar de enxergar no que acontecia uma declaração de amor à história da música ambiente. Ver se repetir essa configuração de escuta difusa, esse gênero que como vapor escapa às tentativas de encarceramento, que como uma pluma desvia com graça das tentativas de controle, interpretação e categorização, só enchia de potência o que Nicolás Jaar fazia no palco, e o que os ouvintes que buscavam uma escuta atenta faziam cada um em seu lugar, apesar (ou talvez até por causa) da figura do terceiro que desaprova. Na metade final do set, durante Time for Us, quando a música já estava até mais conciliada com a demanda dançante (o show foi ficando gradualmente mais eletrônico), problemas técnicos paralisaram a apresentação por cerca de 10 minutos. "Lo siento", disse Nico, que junto com a produção tentava consertar o que ele disse ser uma dificuldade com a energia. Ficou com os demais membros da banda - Daniel Cataño, nos tambores, e Camilo Salinas, no piano - a tarefa de segurar as pontas e improvisar enquanto a conexão com o laptop principal não voltava. Com um entorno mais irritado e a intensificação das conversas, fiquei mais feliz do que antes, percebendo, enquanto ouvia o tambor distintivamente latino de Cataño dando o máximo de voltas em torno de melodia nenhuma, que era nesse momento que a música ambiente estava sendo feita.
Lindo livreto de Archivos de Radio Piedras com letras do disco e entrevistas, vendido no merch
Muitas pessoas ficaram insatisfeitas: as que achavam que estavam indo para um set com batidas mais rápidas, as que não conseguiram abstrair do barulho e queriam apreciar o show em silêncio absoluto (embora destes ninguém nunca tire o fato de ter visto Radio Piedras ao vivo), e provavelmente a própria banda. Quando Nico anunciou que tocaria algumas das mais antigas (tivemos a alegria, por exemplo, de ouvir No, do álbum Sirens), houve pedidos na plateia pelas músicas do projeto Against All Logic, cuja discografia foi toda escrita em inglês. Ocorre que nenhuma palavra em inglês foi proferida no set. Numa noite em que Nicolás Jaar leu um discurso no idioma do público, o público não se esforçou para falar o seu idioma. A verdade é que, por mais que lutemos para extrair algo de positivo no passado da música ambiente, o artista não merecia o tratamento de um bar de escuta para algo que encarou como (e que era) um show. Quem sabe num retorno futuro, em um show próprio, ele consiga encontrar aqui uma base de fãs maior. Fato é que este blog ainda tem muito trabalho a fazer.


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