quarta-feira, 27 de agosto de 2025

#11 - Música ambiente: isso ainda vai ser grande no Brasil

Nativo da eletrônica, Chediak lança "Música Ambiente do Brasil", colaboração de artistas dos 27 estados

Eu estava no ilustre festival Rock the Mountain, em Itaipava, quando conheci uma sala de descompressão. Uma droga tinha batido errado em uma amiga e alguém do staff do evento recomendou que ela usasse o espaço brevemente para se recuperar. A sala foi criada principalmente para acolhimento à neurodiversidade, não para recreação, mas quando me contaram do lugar as minhas orelhas se levantaram imediatamente. Fui remetido às "chill-out rooms", cubículos absolutamente históricos que marcaram a época dos anos 90 nas raves do Reino Unido. Esses, sim, lugares que tinham como função primária "dar uma relaxada com os crias". Eu, que não sendo fumante sou o exato público alvo das áreas de fumante, eu que olho pelas janelas dos ônibus e escuto música ambiente e fazia cabanas de lençóis em casa antes de dormir, soube desde que tive contato com as histórias das chill-out rooms que elas são meu lugar espiritual, e lia os relatos com a saudade de um tempo impossível, com o fascínio digno de um exilado de sua Meca. Espero estar perdoado, então, por não ter resistido a entrar por dois minutos quando passei em frente à sala de descompressão. Estava praticamente vazia, acho que não atrapalhei ninguém. Precisava ter um vislumbre do que era estar numa chill-out room da Londres dos anos 90, e isso era o mais perto que eu vou conseguir talvez em toda uma vida. Minha breve permanência lá dentro foi tão mágica quanto eu tinha idealizado, embora o aspecto de "quarto branco do BBB" tenha sido um pouco perturbador.

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1990: a música ambiente e a música eletrônica no Reino Unido se entrelaçam. Incomodado com as drogas e a "desordem" da riquíssima cena de rave e acid house que pulsava no país, o governo britânico publicou uma lei que proibia a realização de ajuntamentos de 20 ou mais pessoas para ouvir música "inteira ou predominantemente caracterizada pela emissão de batidas repetitivas". Como qualquer ato de repressão, as respostas foram variadas. Num lado do espectro, a linha de frente: a onda que se criou de raves ilegais, em porões, em armazéns, em áreas quase rurais como em torno da M25 London Orbital, estrada que circunscreve a cidade de Londres. No meio-termo, uma solução mais ao estilo Nathan Fielder: um adesivo na capa do novo EP ("Anti") da dupla Autechre avisava que as músicas foram programadas em bateria eletrônica de tal forma que não se enquadrasse na descrição de "batidas repetitivas". "Nenhum par de compassos contém batidas idênticas, e o EP pode ser reproduzido abaixo do limite permitido pela lei". No entanto, eles também aconselhavam que DJs que planejassem tocar as músicas tivessem "um advogado e um musicólogo presentes a todo momento para atestar a natureza não repetitiva da música em caso de importunação policial". E, como resposta menos extrema, a repressão deu vida às boates em baixa frequência, para escuta de discos de ambient, e impulsionou as chill-out rooms. Embora o uso de eletrônicos na música ambiente já estivesse consolidado em álbuns de estúdio desde o nascimento do gênero (Brian Eno, Kraftwerk, Tangerine Dream), foi com essas salas que ela encontrou sua personalidade no mundo físico, criando uma cena adjacente à das raves. Surgiu ali uma relação de simbiose entre corpo e música ambiente, entre dança e estúdio, pela qual as recém-descobertas formas físicas de expressão e o que viriam a ser os sons do ambient house influenciavam um ao outro. A música ambiente não seria o que é hoje sem que sua história tivesse a participação das festas de música eletrônica.

Tome-se como exemplo as "Land of Oz Sessions", que durante seis meses ocuparam, toda segunda-feira, a casa noturna "Heaven", no centro de Londres. Enquanto o DJ residente ocupava a pista principal, era no discreto andar de cima que acontecia o mais interessante. Na sala VIP, foi confiado a dois DJs relativamente desconhecidos o direito de cuidar de um segundo set, nessas sessões de segunda-feira, dentro da chill-out room da boate. Eram Alex Patterson e Jimi Cauty (este também membro da The KLF) - que viriam a ser a lendária dupla The Orb. Eles usavam como matéria prima todo tipo de gravação possível, misturando sonoridades que variavam entre os mais extremos, o único padrão sendo a diminuição do volume e a remoção das batidas: "Tinha um núcleo de umas oito ou nove pessoas que sempre iam e ficavam sentados na frente a noite toda ouvindo o que fazíamos. E então gradualmente foi ficando maior, dependia. Em feriados ficava lotado, até o limite de cem. Os DJs gostavam porque podiam sentar e falar de trabalho, em vez de estar numa sala abarrotada com música alta tentando falar por trás da cabine. O motivo de ter sido tão popular é que ninguém tinha pensado em fazer isso numa boate desde o começo dos anos 70. Eu às vezes passava quatro ou cinco horas tocando coisas da fase bem inicial do dub reggae. Você não precisa dançar, é só balançar a cabeça. Isso ainda é ambiente pra mim. Tínhamos telas brancas pra colocar visuais também. Vídeos caseiros de patos no parque, a gente ia atrás de tudo." Hoje, um usuário do Reddit relata que foi salvo de uma bad trip quando frequentava uma dessas salas. Ele foi levado pelos amigos ao lugar, que passava o documentário Baraka e, segundo conta, a experiência de absoluto desespero se transformou em se sentir um com o universo. Curiosamente, foi uma segunda lei que iniciou o declínio destes espaços em Londres: a proibição do fumo em recintos fechados, nos anos 2000. No Instagram, um movimento tenta hoje um revival das salas em Amsterdam: "bring back the chill out room" (@bbt.cor).

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2025: a música ambiente e a música eletrônica no Brasil se entrelaçam. "Discos Flutuantes" foi o nome escolhido por Pedro Chediak para o selo de Ambient inagurado com o lançamento. Criador multiprojetos residente em Juiz de Fora, ele pode ser definido talvez como um workaholic da cena eletrônica underground. Tem as facetas dos trabalhos como produtor, como DJ, como organizador (as compilações da Speedtest e, agora, "Música Ambiente do Brasil"), como co-fundador (com Diogo Queiroz) de um selo de eletrônica que é também uma festa, e com seus lançamentos autorais - o mais recente, "Música Elétrica", é consideravelmente oposto a um álbum de ambient. Desses trabalhos, o mais reconhecido até o momento é com a SPEEDTEST RAVE. Baseada num conceito de música eletrônica futurista e acelerada, a festa já ocorreu dezenas de vezes no país, incluindo múltiplas edições em Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. Mais cedo este ano, a rave teve sua primeira euro tour, que envolveu arenas do Reino Unido, Espanha, Alemanha, Portugal, França e Suíça. Como selo, SPEEDTEST já tem dois álbuns em que colabora, em cada faixa, com nomes consolidados e emergentes da música eletrônica brasileira. Mas a complexidade da figura de Chediak apareceu há três anos, quando iniciou um projeto musical paralelo: A.A.R ("Aprendendo a Respirar"), nascido da necessidade de reconexão interior e desligamento da velocidade do mundo externo - que, ironicamente, na SPEEDTEST é a ferramenta mesma de expressão. A.A.R tem três singles e um álbum, num estilo que lembra Hiroshi Yoshimura, Takashi Kokubo e Akira Ito em sua dualidade do uso de eletrônicos e sons gravados diretamente da natureza. O álbum foi feito "com sons do Brasil gravados durante dois anos", e agora seu título, Discos Flutuantes, é o que dá nome ao selo que promete mobilizar uma cena carente de público, identidade e organização. O selo diz que aproveitará toda a estrutura construída pela SPEEDTEST RAVE, e isso é ótima notícia para as perspectivas de produção, divulgação e realização de eventos de ambient. 


Com 168 minutos de duração, a abordagem mais sensata para "Música Ambiente do Brasil" não poderia nunca ser a de um comentário faixa por faixa, mas antes uma espécie de mapa que possa ajudar um ouvinte leigo a se enveredar por referências similares, a partir das que mais lhe agradaram. As menções que se seguem não são, de maneira nenhuma, destaques (numa compilação de faixas que são todas bem produzidas), mas faixas que me evocaram correspondências mais diretas com outras obras de maior projeção. Os objetivos disso são dois: primeiro, demonstrar a amplitude de influências que alimentaram as músicas escolhidas para a compilação; segundo, recomendar artistas, mesmo que estrangeiros, porque embora se trate de um texto que celebra a música brasileira eu entendo que o sucesso da música ambiente por aqui dependerá também da formação de uma comunidade ouvinte. Quem gostar, por exemplo, de "indelével", em especial dos apaixonantes assobios do sintetizador que entra na metade da faixa, deverá gostar também dos adereços cósmicos presentes na música conhecida como New Age, como na obra do japonês Kitaro. "saudades david lynch" e "sonhos*(33)" lembram com a coloração de seus sintetizadores e a leveza dos instrumentos o álbum Mia Gargaret, de Gia Margaret. "vovó" e "congonhas do norte", por sua vez, exploram o mundo das gravações de campo, incorporando fragmentos de interações humanas e da vida rotineira. Momentos do álbum Kagayaki, de Masakatsu Takagi, e da banda Acessórios Essenciais, do extinto selo Cloud Chapel, usam de artifícios parecidos. Enveredando mais para um Dark Ambient, "cefaleia", que faz jus ao nome, lembra o álbum Mirages, de Tim Hecker, sustentando uma atmosfera sombria e densa. Já "Sonho de Criança" é uma faixa mais para o Drone, reminiscente dos trabalhos de Stars of the Lid, e com sintetizadores suaves que aquecem a faixa. Indo para músicas mais esparsas, de menor ritmo, "flores secas, ode ao sono" e "terra" criam atmosferas lunares que remetem a Apollo, de Brian Eno, e "distância" e "voar livre" poderiam estar em Surround, de Hiroshi Yoshimura. No extremo oposto, as obras mais eletrônicas: "memórias não binárias" entra com uma saw wave pesadíssima, e ao mesmo tempo extremamente melódica. Pela forma como constrói a estrutura da música e pela emotividade do clímax, quem se interessou por essa deve se deleitar com os arrebatamentos que Uboa consegue provocar em momentos de "The Origin of My Depression". Em "aurora", do DJ PS2 Desbloqueado (que levaria do blog o prêmio Nomes de DJ, se existisse um), traços do álbum "Love Is A Stream" de Jefre Cantu-Ledesma aparecem numa imponente distorção que preenche a paisagem sonora. A música Perfect Night do artista 7038634357 também tem um glitch como esse, que pode interessar. Em "e a íris se abre", o que parece ser uma guitarra digital é picotada num efeito muito parecido com os de Rachika Nayar (resenhada aqui no texto 4!), capturando como um todo a atmosfera do álbum The Trembling of Glass, mas principalmente a faixa Marigolds & Tulsi. Muitas outras músicas despertarão nos ouvintes referências próprias e lembranças. As quase três horas de disco merecem múltiplas reproduções, como trilha sonora para atividades diversas ou como objeto de atenção exclusiva. Seja como for, é inevitável que momentos pontuais e sutilezas espalhadas pela obra se façam captar pela sensibilidade e subam à superfície da consciência. 

A música ambiente já é grande no Brasil, isso é evidente. A nossa música, instrumentalmente, já é uma das mais evocativas e, mesmo no que não se proclama como ambiente (quase tudo), pode-se pinçar no nosso acervo diversos momentos de instrumentações esparsas, texturas e ambiências vívidas e, como idealizou Brian Eno, música que se insinua nos ambientes como um perfume ou uma coloração. Quando se pensa a partir disso, nossa música ambiente é na verdade uma das mais ricas. O problema, me parece, é que além de uma falta de comunicação entre membros de um mesmo ambiente colaborativo, e de criadores do gênero que se reconheçam como tal, o limbo identitário é também uma questão de nome. Na falta de um nome, o "Cânone" ocidental e do norte dará aquele que preferir. Como seria chamado lá fora o que faz, há mais de uma década, o grupo Metá Metá? Em sua ignorância, talvez se refiram aos sons feitos no Brasil como "tribais", ou com muita sorte "world music". Que nome se dá aos álbuns esotéricos de Egberto Gismonti, como o "Duas Vozes" que fez com Naná Vasconcelos, ou a musicalidade holística de Hermeto Pascoal? Desse jeito, é claro que parece que não temos música ambiente. Um país, no entanto, com uma combinação tão única de influências convergindo: a origem indígena, a cultura afro. Isso não é problema exclusivo nosso e não se mostrou irresolúvel. Veja-se o Japão, também embebido em tradições ricas de culturas ancestrais, com influências ritualísticas e do xintoísmo, mas que precisou do "Satie boom" para que a kankyō ongaku (leia o texto 5 deste blog para o desenrolar disso) trouxesse artistas que batiam no peito, escavavam sua própria cultura, e diziam: "essa é a música ambiente do Japão". Por aqui, não há sequer uma ideia bem definida do que é o Brasil (afinal vivemos na "república fábio brazza", como argumentei no texto 7), quanto mais do que seria a música ambiente brasileira. Quem iria dizer que aquilo que existia no Japão, antes do Satie boom, não era música ambiente? Ninguém dizia que não era, mas também faltava quem dissesse que era. Aqui no Brasil, entre os que dizem e os que não dizem que são, há coisas muito interessantes acontecendo: a enormidade de colaborações de Juçara Marçal, as promissoras colagens sonoras de Mbé (o álbum Rocinha é dos melhores que surgiu recentemente), a modernidade de Maurício Takara e Carla Boregas, as músicas espectrais do selo Municipal K7, os rituais documentados no disco "Gnose", de Acavernus e Yantra, a eletrônica de Valesuchi, os trabalhos sutis de Daniel Stringini. Com sonoridades mais sombrias, há Kovtun, Mount Shrine e o dungeon synth de Iamí. Há poucos meses, Numa Gama (que também tem uma obra empolgante) organizou duas edições de um evento destinado a promover formas delicadas de escuta, com DJ sets que envolveram Kalozin, Yan Higa e Aline Vieira. Academicamente, nosso repertório ainda é limitado. Com influência da muzak (introduzida no nosso texto 2), a maior parte das pesquisas ainda é voltada para a música ambiente de lojas influenciando o comportamento subliminar dos consumidores, consequência de se viver num país de publicitários.

No nosso caso, é mesmo necessário nomear? Para uma música que é, por essência, fugidia e vaporizada, pode fazer sentido querermos que escape também ao white gaze e evitar colocar nela um rótulo. Talvez a descrição do Discos Flutuantes tenha resumido bem: "sons do Brasil". E até o argumento da falta de identidade poderia ser questionado, com as micro-comunidades formadas em torno dos acontecimentos musicais que sequer se preocupam com sua catalogação. Mas seja como for, o problema persiste: no mínimo o de plataforma. Eu acredito que é importante nomear as coisas. Que com isso cria-se uma força que de outro jeito não existiria. Chediak chegou até "Música Ambiente do Brasil" por meio de uma chamada aberta (divulgada no blog!) pela qual, por meses, criadores do Brasil puderam submeter seus projetos com ideias do que seria a música ambiente brasileira. A divulgação foi ampla, embora ainda me pareça natural que, dado o núcleo inicial de onde se difundiu, haja uma predominância de obras mais inclinadas à eletrônica. O resultado foram mais de duzentas faixas recebidas, com a escolha de sessenta e uma (além do próprio Chediak, que colabora através do A.A.R). Com nomes mais estabelecidos, como Mari Herzer, Julio Santa Cecilia (sob o nome Mondrongo) e Carlos do Complexo (este que já estava há tempos na lista de resenhas do blog), e em sua grande maioria artistas ainda de pouca projeção, esboçou-se um traçado do que esse grupo de pessoas imagina para uma possível música ambiente brasileira. Pela abrangência nacional - tem colaborações de todos os estados -, a relevância e o potencial desse disco, e do selo Discos Flutuantes, como um divisor de águas parece indiscutível. Aproveitando a terminologia de divisores de águas e de sons da natureza: se estamos falando de ambiente, a compilação começa a criar um ecossistema.

Quem zapeou pelos canais de TV no início da década de 2010 certamente esbarrou, mais do que gostaria, no comercial da Topper, que prometia: "Rugby: isso ainda vai ser grande no Brasil". O selo Discos Flutuantes acaba de lançar a compilação que de certo modo era um dos grandes sonhos deste blog, isto é, um projeto a nível nacional que articule, mais do que uma "cena", um ecossistema. Se hoje a música ambiente brasileira ainda depende do diálogo com outros gêneros para se desenvolver (as enormes vindas ao Brasil, neste ano, de Ichiko Aoba e Nicolás Jaar provam isso), a mobilização que tende a existir a partir de agora pode mudar o cenário. Um gênero que se defina como tal, que ande com as próprias pernas, e que encontre seu próprio modo de expressão. O rugby não deu certo no Brasil. Para nossa sorte, a Topper nunca disse que a música ambiente vai dar.

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