terça-feira, 11 de novembro de 2025

#13 - Uma teimosa defesa da folga

Mogwai no Circo Voador, John Cage e a importância de não otimizar

Os atuais vídeos de yoga na internet se dividem em dois tipos. Um deles é exclusivamente informacional, e quer "transmitir conteúdo". O objetivo é que você decodifique a mensagem, não importa a forma como está sendo dita, em termos de posições que o corpo deve fazer, e as execute. Deve-se mexer este músculo de uma certa maneira e depois aquele outro. A instrução é pontual e facilmente identificável no corpo. Quanto menos ruído houver no caminho, melhor. Falo de ruído enquanto acontecimentos acessórios - barulhos, detalhes do rosto de quem está falando, uma dicção estranha; em suma, tudo que implique um risco maior de distração. Se possível, que essa série de posições corporais seja assimilada por "download". Os Jetsons se alimentavam por pílulas, e o dilema é o mesmo. Por um lado, a inegável eficácia, mas por outro a perda dos aspectos sensíveis que rodeiam o ritual da alimentação ou da prática de yoga. 

O segundo tipo de vídeo é um excessivamente estetizado, em que se nota que o criador deu atenção à forma mas simplesmente foi mal assessorado na formação de seu senso estético. Trata-se do yoga mais comercializável, no estereótipo ao qual costuma ser mais imediatamente associado - a estética clean, novaiorquina, a ideia de yoga como "estilo de vida", ou seja, não como algo que se pratica, mas como algo que você é visto praticando. Acontece que trancado dentro de casa na pandemia, precisando fazer qualquer tipo de movimento físico, tive a sorte de achar um vídeo que não pertencia a nenhum dos grupos. Era do Gilberto Schulz, e continha uma série de movimentos que eu deveria repetir todos os dias. No início repetia por não ter memorizado ainda a sequência, mas depois percebi que, mesmo já sabendo o passo-a-passo, algo ainda me prendia ali. Com as múltiplas exibições me acostumando ao vídeo, uma espécie de relacionamento foi criado: como em qualquer outro, há a criação gradual de uma familiaridade com o particular daquele objeto e, para isso, é necessário que o objeto tenha uma personalidade suficiente para se estabelecer raízes nos seus detalhes. Esse vídeo tinha diversos deles. Pertencia à realidade, era algo a ser vivenciado no mundo. Tinha suas próprias invaginações e trejeitos, e um deles motivou este texto. 

Perto do fim da prática, no interlúdio para uma meditação guiada que conduziria, o instrutor nos dava um momento de descanso. A sessão de yoga era leve, uma das menos desgastantes que eu já tinha feito. E, mais ainda, o vídeo feito na pandemia talvez tivesse a maioria de seus espectadores passando os dias em casa, com um cansaço que era somente mental, não físico. O descanso fazia inicialmente pouco sentido, então. De barriga para cima e joelhos dobrados, o quadril passava de uma posição inicialmente erguida para finalmente entrar em contato gradual com o tapete, seguido pela coluna. A ordem era descer vértebra por vértebra, começando pelas mais próximas da cervical, que estavam menos elevadas, até que o corpo estivesse em nivelamento horizontal. Eu ganhava consciência das vértebras e sentia o contato delas com a maciez do tapete, perfeitamente alinhadas. Depois ficávamos por um minuto estatelados no chão, descansando. Só sei que ali não importava que o descanso fosse redundante, que o exercício anterior já tivesse sido quase um relaxamento: por algum motivo aquele momento me afetava ainda mais por isso. Acho que a redundância do descanso ganha esse poder, que vem não da qualidade de necessário, porque quando ele é necessário é também pouco notado, governado apenas por ação e reação. A respiração profunda é mais prazerosa em repouso do que quando se está recuperando, ofegante, de um exercício intenso. Quando se cria essa camada de redundância, parece que é aberta uma consciência maior sobre o acontecimento, e fica mais explícito o ato de cuidado por trás. 

Lembro de sentir o mesmo com outro youtuber que fazia lives e nos presenteava com cinco minutos de espera no começo, para que o público da live tivesse tempo de chegar (uma espera na presença dele, com ruídos, não uma espera fora do ar). Essa espera também vinha como um descanso, ainda que o vídeo tivesse acabado de começar, e isso sempre me afetava de uma maneira similar a um ASMR. Em outro vídeo, de uma aula de doutorado em alguma universidade gringa, o professor divide o longo conteúdo em duas partes ao oferecer para os alunos um pequeno intervalo ali no regime presencial. Sem cortes, o vídeo conservava a lentidão do período de pausa e, em vez de pular para a volta do conteúdo eu vivenciava essa pausa com prazer maior do que o resto do vídeo. Várias vezes, depois de já ter terminado a aula, eu voltava para esse vídeo especificamente nos minutos de pausa. Todos esses exemplos se iniciam no gesto de arranjarem para nós um espacinho para respirar, um espacinho como aquele entre as vértebras e o solo, quase imperceptível. Mas que nós assimilamos em toda a sua completude, porque o corpo recebe essas pausas com alívio. Podemos batizar conceitualmente esse espaço de folga.

*

Numa avenida movimentada em horário de almoço de um dia útil, um homem de camisa social anda depressa, como uma seta num fluxo de setas que percorrem direções aleatórias, governadas pelo caos. Ele não tem consciência disso, mas vive buscando otimizar cada segundo de seu dia. Com o sinal aberto para os veículos, ele vê um carro se aproximando em velocidade moderada, mas numa fração de segundo calcula que sua travessia ousada deve dar certo. De fato, completa a chegada ao outro lado, tendo economizado alguns segundos. Satisfeito com sua sagacidade, um pequeno jato de serotonina banha seus órgãos internos. "Tomei uma boa decisão", ele diria se estivesse buscando palavras para externalizar esse breve momento de prazer. Essa pequena conquista acrescenta ao castelo que ele constrói cuidadosamente, com disciplina e consistência, à ideia de si como alguém que "toma boas decisões". Ele é uma pessoa otimizadora.

A teoria econômica chama este sujeito de homo economicus. Os dispositivos teóricos que o neoliberalismo desenvolveu para fundar e legitimar suas bases de funcionamento necessitam, literalmente (porque os modelos matemáticos usados para representar fenômenos ecônomicos dependem de certas hipóteses sobre os agentes), que os indivíduos modelados sejam do tipo homo economicus. Isso sempre aderiu de forma surpreendentemente boa à realidade quando se trata de quem tem o poder decisório - donos de empresas, por exemplo. Mas lamentavelmente a era dos empresários-de-si fez disseminar na sociedade a sanha otimizadora como uma infecção. Cresce o número de pessoas, até as que podem escolher, que têm uma rotina apertada, sem espaço para besteiras e vícios. Hobbies apenas se tiverem propósito, conversas apenas com pessoas que te lançam para frente, que sejam as quatro mais inteligentes que você dentro da sala, sem papo furado jogado fora. Decadência do álcool, crescimento da coca zero. Aqui, quem impera é o oposto da folga. Esse aperto na rotina, a hipertrofia do treino, os adjetivos "tight" ou "clutch" usados como os maiores dos elogios na língua inglesa. E, como não devia ser surpresa, isso está incorporado nos modelos econômicos. 

A otimização se trata do seguinte: um agente econômico, para tomar uma decisão, usará as informações disponíveis - fórmulas matemáticas, basicamente. Ele sabe sua própria função de lucro, sua função de custo, as fórmulas de comportamento dos consumidores, de seus empregados. De posse disso, ele maximiza sua função de lucro, o que consiste em escolher determinados valores (quantidade de insumos de produção, salários dados aos empregados, horas de trabalho exigidas de cada empregado, preços cobrados aos consumidores) que levem aos melhores resultados para sua função. Essa maximização, entretanto, encontra alguns obstáculos. São as chamadas restrições, como a existência de um salário mínimo, de um máximo permitido de horas que um empregado pode trabalhar, de um preço máximo que pode ser cobrado dos consumidores antes de ser considerado abusivo. Se não fosse por essas restrições, o "ótimo" (no sentido técnico, isto é, a solução que otimiza o resultado para o empresário) seria sempre pagar salário zero e exigir horas infinitas. O conceito matemático de otimização é rigorosamente este: maximizar uma função enquanto se está sujeito a certas restrições. Às vezes o problema matemático a ser resolvido é o inverso - minimizar uma função de custos dadas certas restrições que a impedem de ser infinitamente baixa - mas são dois lados da mesma moeda. 

Acontece que, devido às assimetrias de poder, uma dinâmica econômica nunca resultará em uma condição folgada para trabalhadores e consumidores. Matematicamente, a busca por maximização de lucros consiste na escolha de x e y que sejam os que maximizam a função f(x,y). Para isso, tem-se uma lista de restrições a serem seguidas. Elas são do tipo g(x,y) ≥ c, ou h(x,y) ≤ b. Essa modelagem do "maior ou igual" ou "menor ou igual" representa o fato de que as restrições vêm na forma de um valor mínimo ou máximo a ser respeitado. É reservado ao empresário o direito de pagar acima do salário mínimo ou de pedir que seu funcionário trabalhe menos de 44 horas semanais. Observamos na teoria econômica, no entanto, os modelos prevendo que o empresário homo economicus, pessoa otimizadora, seguirá sempre à risca as condições impostas a ele. Quando isso acontece, dizemos que a restrição original se torna uma "binding constraint", ou seja, aquela função que deveria ser maior ou igual a um determinado valor passa a valer, após resolução do problema matemático, com igualdade - no formato g(x,y) = c. O salário poderia ser maior que o mínimo, mas buscando a maximização do lucro a escolha final do empregador será, sem surpresas, simplesmente aquele que ele foi obrigado a pagar. A qualidade do chocolate de hoje é pior que a de ontem porque o custo para o produtor subiu e ele, minimizando sua função de custos, adultera a qualidade do produto para manter seu lucro igual. O capitalismo é viver no extremo da maximização ou da minimização. O acúmulo é grande, mas as partes frágeis, como um pano encharcado que é retorcido e apertado até secar, vivem no limite. O termo binding é a perfeita representação desse aperto, dessa ausência total de folga que nos governa. É o mesmo termo usado no Direito quando se elabora contratos e certas cláusulas são obrigatórias de serem seguidas. São chamadas de "binding clauses". No fim, talvez Machado tivesse razão quando descrevia o deleite de se remover sapatos apertados. Quando eu lia os livros de teoria microeconômica que continham esses problemas de otimização, minha relação com as binding constraints, mais do que uma revolta intelectual, era radicalmente sensorial. Saber que a resolução do problema matemático passava por esse aperto me fazia sempre ter devaneios de tirar os sapatos e experimentar a folga, imaginando a sensação de alívio.

Problema típico de otimização. Deseja-se maximizar a função f, em formas ovais azuis, e a existência de múltiplas camadas indica que, variando os valores de x e y, é possível se deslocar ao longo do espaço do gráfico entre as curvas azuis, que resultam em diferentes valores. A restrição é a curva de custo g, em vermelho. A solução do problema matemático está no encontro entre a curva d1 e a curva vermelha, onde as setas são exatamente opostas.

Por acidente o exemplo da quantidade de horas trabalhadas pelo funcionário, decidida pelo patrão, resultar em uma condição de aperto nos lembra novamente o início do texto, a folga definida como descanso. Tal qual as férias do trabalho ou uma espera pela abertura do sinal que em nada otimiza a rotina (mas salva a mente de um estado contínuo de paranoia) ou os espacinhos de inação num vídeo de yoga, num início de live e num intervalo de aula, a folga é a margem entre o ponto que vivemos e o ponto ótimo, esse excesso que nos garante uma distância protetiva, que nos salva da otimização. Os grandes empresários hoje usufruem de excesso - as margens de lucro. Mas dificilmente terão o descanso mental, porque sendo produtores e produtos da cultura do aperto, a paranoia otimizadora está codificada no centro de seu ser. A nível de organização coletiva, deveríamos reivindicar para nós todas as margens. Mas a nível individual, devemos no mínimo reivindicar a folga simbólica. Valorizar a lentidão, as ineficiências, os desperdícios, repelir a pressão pela magreza (manifestação corporal da minimização), cultivar pequenos vícios.

*

A folga é também dimensionalidade - Husserl falava do "horizonte interior das coisas", se referindo ao conjunto invisível do que é possível, mas não realizado. O potencial, digamos. A folga são todas as camadas inativadas, abertas em suspensão. Pedro Cassel tem um poema chamado "Profundidade de Campo" que nos abre uma fresta para esse mundo:

estou feliz porque vi meus amigos,
feliz porque na sessão de cinema
tinha muita gente bonita e interessante
que não conheço e posso nem vir
a conhecer, mas cuja existência
enche de possibilidades a vida,
amplia a profundidade de campo
da cidade em que vivo e na qual
estou feliz em morar, porque ontem
num trajeto curto de bicicleta
vi um parque, um bar, um puteiro,
um homem bonito com dois cachorros,
uma árvore caída e um cego cantando.

*

"We're going to play two more songs", disse Stuart Braithwaite, do Mogwai. Deviam ter se passado só uns 50 minutos desde o começo do show, que se deu pontualmente às 21h da última quarta-feira, dia 5, no Circo Voador. Era o retorno da banda escocesa à nossa cumbuca acústica depois de treze anos. Mesmo que em 2012 já fossem veteranos e tivessem discografia suficiente para se assentarem e viverem de greatest hits, usufruindo da paz de estar entre os grandes do rock, o grupo continuou ativo nos álbuns de estúdio e fez muitas de suas melhores músicas desde então. Do repertório tocado nesta quarta, sete foram criadas neste período: uma do disco Rave Tapes (2014), outra de As The Love Continues (2021) - a já histórica Ritchie Sacramento - e cinco de The Bad Fire, lançado este ano, que incluem a excelente Fanzine Made Of Flesh. Ainda que um anúncio de estar a duas músicas do fim após meros cinquenta minutos de show costume ser um pouco frustrante, fiz as contas rapidamente. Deviam ter duas de uns dez minutos cada, depois certamente um bis com Ritchie Sacramento e, com sorte, o calhamaço musical Mogwai Fear Satan. Beleza! Ainda estamos na metade do show. Um amigo me disse nessa hora: "Eu não gosto desse negócio de bis não. Acho que ele tem que dizer quantas realmente ainda vai tocar e ficar estabelecido isso". Respondi: "É uma delícia essa sensação de final falso. Você não programava o despertador pra bem cedo nas férias do colégio só pra sentir o alívio de perceber que não precisa levantar de verdade?". E nisso percebi que em última análise eu me referia ao aperto dos sapatos para tirar depois, à redundância da pausa nos vídeos de yoga.

O uso de tampões no ouvido em shows é relativamente comum - os próprios membros da banda todos os tinham. Mas uma moça em particular usava um literal equipamento de proteção individual, um daqueles protetores auriculares vermelhos de loja de material de construção. No início achei certa graça, porque mesmo sabendo do volume que seria alcançado naquele recinto eu desejava viver a experiência sonora completa. No dia seguinte já a invejava com bastante amargura, conforme eu tentava me comunicar ao longo do dia e ouvia as demais pessoas com muita distância, isoladas de mim como que por uma câmara sonora. Mas não tem importância: a parede sonora foi arrebatadora, seja pelos agudos estridentes gerados por três guitarras que tocavam ao mesmo tempo suas notas na parte mais profunda do braço, seja pelo baixo que, do piso de madeira da pista, eu sentia reverberar em mim de baixo a cima, num fluxo que me chegava pelos pés e subia até o coração, se misturando com as batidas cardíacas. Tendo ouvido de amigos que dias antes haviam ido ao show em São Paulo, no Parque Ibirapuera, que a acústica aberta do parque dispersava o som, me senti no Circo (como realmente num circo) um motoqueiro do globo da morte, a arena fechada vibrando e rodando violentamente aos comandos do grupo. Evidentemente com pouco uso de vocais, eu olhava para a banda e devaneava com frequência sobre a facilidade com que aquela formação que via ali no palco podia ser a formação de uma banda de rock mainstream das mais populares e lembradas entre gerações se cedesse ao uso da voz. Está aí a beleza do post-rock: a dimensão de possibilidades de que se escolheu abrir mão pelo enaltecimento dos instrumentos e, de vez em quando, da voz como instrumento. Husserl e seus herdeiros já nos mostraram que esse espaço deixado também pertence ao ser. Logo, a banda não escolheu deixar de ser nada daquilo ao abrir mão dos vocais mas, pelo contrário, conserva a beleza de suas potencialidades de forma oculta. A folga com que resolveu atuar confere à sua música uma riqueza subjacente, um horizonte interior, tão importante quanto o externo. A profundidade de campo é maior em Mogwai.

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Adriano Imperador, em texto publicado no The Players' Tribune, se colocou ao mesmo tempo como desperdício e potencialidade:

"Você sabe o que é ser uma promessa? Eu sei. Inclusive uma promessa não cumprida. O maior desperdício do futebol: Eu. Gosto dessa palavra, desperdício. Não só por ser musical, mas porque me amarro em desperdiçar a vida. Estou bem assim, em desperdício frenético. Curto essa pecha. (...)

Tentei fazer o que eles queriam. Barganhei com o Roberto Mancini. Me esforcei com o José Mourinho. Chorei no ombro do Moratti. Mas não consegui fazer o que eles pediam. Eu ficava algumas semanas bem, evitava o danone, treinava feito um cavalo, mas sempre rolava uma recaída. E todo mundo me detonava. Eu não aguentava mais. 

Tu tá vendo agora. Tem algo demais acontecendo no nosso rolé? Não. Desculpa decepcionar quem quer que seja. Mas a única coisa que eu busco na Vila Cruzeiro é sossego. Aqui eu ando descalço e sem camisa, só de bermudão. Jogo dominó, sento no meio-fio, lembro minhas histórias da infância, ouço música, danço com os meus amigos, durmo no chão. Vejo o meu pai em cada uma dessas vielas. 

O que mais eu vou querer?"

*

Uma aparição ainda mais musical da folga é no manejo de silêncios. Mogwai sabe disso. Ainda que suas músicas mais ambiente no sentido puro não costumem fazer parte da seleção tocada nos shows, Fear Satan já traz uma amostra boa o suficiente. A obra prima exibe um controle magistral de volume, numa jornada que varre todo o espectro entre quietude e barulho. No meio da música, um silêncio quase absoluto por cerca de dois minutos que toma o Circo Voador. Só para logo em seguida a banda retornar com um som abrupto dos mais ensurdecedores da noite, perto de encerrar o show. Mesmo na seleção da setlist esse controle também se mostra presente em cada uma das outras músicas. Mogwai, e ao vivo mais ainda, tem quase a construção lenta de uma banda de slowcore. Gerenciando tensão e alívio, a progressão dura quanto for preciso para levar à liberação esperada - algo inconcebível na música de rádio, projetada e programada para ser eficiente, econômica e condensar conteúdo sem ter silêncios "despropositados" no meio.

John Cage tinha uma relação com o silêncio melhor do que ninguém. Foi ele quem compôs 4'33", uma peça musical cuja partitura ordena que seu intérprete fique parado em frente a um instrumento (originalmente piano, mas é permitido qualquer outro) em silêncio por quatro minutos e meio. Interpretada pela primeira vez por David Tudor em 1952 no Maverick Concert Hall, as reações do público envolvem, de vez em quando, algumas risadas, mas Cage estava fazendo uma investigação filosófica. Ele não acreditava no vazio, e sabia da impossibilidade de se alcançar o silêncio absoluto desde que entrou numa câmara à prova de som e sem nenhuma superfície reflexiva, chamada câmara anecoica, na universidade de Harvard. Naquela experiência, achando que encontraria o nada, ele relatou que ouvia dois sons persistentes: um agudo e um grave. Explicaram a ele que o agudo era o seu sistema nervoso, e o grave era a pulsação de seu sangue. 4'33", portanto, é na verdade uma incorporação dos elementos exteriores que fazem parte de cada ocasião específica em que é tocada. Nos ouvintes, por sua vez, podemos imaginar que acontece um movimento de levarem sua consciência a explorar seus arredores, nutrindo uma percepção crescente do tempo e espaço em que se encontram. A intenção do compositor em suas obras musicais, para além de 4'33", era que os sons seguissem um ao outro numa sequência livre, não-artística, sem uma "cola" harmônica. As obras eram estruturadas puramente como duração entre eventos, o que significa que havia durações entre eventos dentro de uma mesma obra e, entre uma obra e a seguinte, a demarcação era simplesmente a existência de uma duração maior. O silêncio, portanto, é o próprio elemento constituinte que permite a uma obra se reconhecer enquanto tal.

O que isso nos diz sobre Cage é que ele tinha perfeita compreensão do fato de que o tempo tem densidade. Como desenvolvi no texto 7, as coisas do mundo têm uma espessura, e essa é mais uma manifestação. Era isso que me prendia à aula de yoga do Gilberto e não a outras: um vídeo que respeitava a tangibilidade dos detalhes que o compunham, um ritmo que não se impunha ao desenvolver natural dos fenômenos que aconteciam ali, um tratamento de produção que não tentava colocar filtros entre nós e essa experiência. A física já provou que o espaço-tempo se comporta como um tecido e John Cage se torna, então, praticamente um fenomenólogo ao deixar que esses relevos existam. Suas obras não eram minimalistas - apesar de usarem silêncios, ele sequer foi simpático ao minimalismo quando este surgiu. Cabe lembrar, a minimização é meramente o lado inverso da maximização, e ambas são subordinadas ao domínio otimizador. O minimalismo supõe um rigor que busca o isolamento, mas Cage não era econômico em suas composições porque não só aceitava os detalhes, que são inevitáveis, mas direcionava o palco para eles, numa intimação a colaborar. Esse mesmo respeito - ou antes, no meu caso, até uma fixação - pela densidade intrínseca do espaço e do tempo, portanto, é o que me ajuda a entender o motivo de eu nunca ter ficado confortável ao acelerar áudios do zap. Os intervalos irregulares de cada prosódia, a espessura da voz e o peso dos elementos sonoros que aparecem no entorno conferem a cada experiência de fala uma singularidade que é simplesmente violento transgredir. Nos tempos atuais de aulas em vídeo, imagino alunos chegando perto de uma prova, com tempo limitado e bibliografia em acúmulo, e concluo que deve ser este o verdadeiro remorso da procrastinação: a necessidade de acelerar, rompendo o fluxo das coisas, e a consequente perda da chance de se relacionar com o objeto enquanto experiência vivida, restando a condensação de conteúdo, sem nenhuma folga ou contemplação. Situação que acontece com diversas outras pessoas, pasmem, não por necessidade acadêmica, mas por escolha pessoal, seja na seleção de vídeos de yoga para assistir, formas de atravessar um sinal ou músicas para escutar.

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